No canto de um corredor escuro

M poderia perfeitamente estar connosco a almoçar, na sala de jantar, e ser o nosso tio, avô, primo ou cunhado:

Está bem vestido, absolutamente limpo e cheira bem.

Mas vive num canto de um corredor escuro, em plena capital nacional, no meio do frio, da humidade, do barulho da vida nocturna e do abandono.

Pede-nos que chamemos os Médicos do Mundo, porque ficou sem a medicação e não se sente bem.

A coordenação da Comunidade Vida e Paz tratará disso rapidamente.

Os problemas deste homem com alguns dentes a menos – a única coisa que afecta a compreensão do seu discurso perfeitamente lógico e articulado – começaram quando o filho, com quem vivia, arranjou uma nova namorada.

A mulher virou-o contra o pai: Passou a estar afastado dele e a tratá-lo mal.

A rapariga queria mandar o sogro limpar toda a casa onde viviam – “e bem limpa”, exigia – como se fosse criado do casal.

Depois de agredir o pai verbal e fisicamente várias vezes, o filho expulsou-o de casa. Pô-lo na rua como se fosse um objecto ou um pedaço de lixo.

Há dias, roubaram-lhe a mala onde tinha roupa, artigos de higiene e medicação. Isto pouco depois de alguém, que conhece indirectamente o filho, lhe ter perguntado especificamente se estava a viver na rua, e onde.

O local é bastante escondido, e só quem saiba exactamente onde fica o encontra. O que o leva a crer que o responsável pelo roubo foi o filho.

Diz que nunca poderá perdoá-lo por tudo o que lhe fez e abraça-se a nós a chorar e a pedir desculpa insistentemente.

A conversa dura quase uma hora. Ainda há mais dezenas de pessoas que precisam de ser ajudadas, e a carrinha acaba por partir.

Cinco horas depois, no final da noite de apoio às Pessoas Sem Abrigo da cidade, a equipa volta a passar pelo local.

Dorme, enrolado, tapado e com um ar mais pacificado. A Comunidade Vida e Paz continuará a acompanhá-lo e a ajudá-lo como conseguir.

Se Deus descesse à Terra

Após um almoço retumbante, antes de um lanche arrasador e durante um filme hollywoodesco visto no ecrã monumental da sala, escuta-se a campainha tocar.

Ouve-se a minha mãe dizer várias vezes “não estou interessada”, “mas eu não estou interessada” e, de novo, “não estou interessada”.

Há uma voz feminina de tom geriátrico que vai respondendo “mas este é um acontecimento muito interessante”, “mas estamos abertos a todos os tipos de pessoas” e “mas podemos conversar sobre todas essas questões”.

O diálogo chega ao fim. Aparece metade de uma folha A4, dobrada em dois. É revelado o seu conteúdo:

O sofrimento vai acabar algum dia? Diria… Sim? Não? Talvez?

Ficamos então a saber. A Bíblia diz que Deus enxugará dos olhos “deles” todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor.

A dar crédito ao pequeno papel colorido, a Bíblia informa ainda que Deus não causa os nossos problemas e entende o sofrimento que experimentamos. E esclarece-nos de que todo o sofrimento vai acabar.

Seguindo esta ordem de ideias, a bíblica fonte explica que Deus odeia o sofrimento, fica indignado quando nos prejudicamos uns aos outros e se preocupa com cada um de nós!

Através do seu Reino, que está para chegar, em breve acabará com o sofrimento de cada pessoa.

A informação é bastante reconfortante, embora mereça o devido escrutínio e o estudo de fontes diversificadas sobre o assunto.

Se olharmos à nossa volta um minuto, parece ser exactamente o contrário que está a acontecer.

Não faltam exemplos, mas há um bastante adequado.

Na Birmânia, no Bangladesh, na Índia e no Paquistão há um povo sem Estado nem território, os Rohingya, que tem sido perseguido e dizimado há décadas pelo governo birmanês.

Apesar de os Rohingya viverem na Birmânia desde tempos imemoriais, o regime não os reconhece como habitantes birmaneses.

Não lhes é concedida cidadania, pelo que não têm boa parte dos direitos básicos e óbvios de qualquer ser humano.

Os outros países da região também não os aceitam: Vivem como párias, como não-pessoas, sendo rejeitados, abusados e maltratados em todas essas nações.

Muitos habitam campos de deslocados, infernos terrestres onde continuam a ser vítimas de doenças, fome, intempéries e abusos, totalmente desprotegidos.

Quando chegam a algum dos países vizinhos, sabem que vão ser mandados de volta para a Birmânia, onde, provavelmente, serão mortos.

Chegam a dizer:

“Preferimos que nos matem já aqui, em vez de regressarmos”. Em vez de regressarem à Birmânia, o país cuja presidente-Nobel da Paz Aung San Suu Kyi não reconhece a sua existência, não pronuncia nunca o nome da sua etnia e diz que não percebe porque fogem.

Os Rohingya são certamente daqueles que muito agradeceriam se Deus chegasse hoje à Terra e resolvesse os seus problemas. Seria fantástico se isso acontecesse.

As sezões e as sazões

Uma sezão é um acesso de febre, intermitente ou periódico, precedido de frio e calafrios.

Uma sazão, do latim statio, é uma estação do ano, tempo propício para alguma coisa, quadra favorável ou conjuntura.

As duas estão intimamente interligadas, digam o que disserem.

O Verão estará brevemente morto e enterrado, quer queiramos quer não. A Amélinha, a “Gááta!!”, o Chiquinho, o Jeremias e a Matilde já perceberam isso há uma porção de dias.

Estão mais amiguinhos. Passam boa parte do tempo enrolados e agarrados uns aos outros. Concentram-se os quatro, ou três, ou no mínimo dois, em espaços de dez ou 15 centímetros.

E passam a noite em cima de mim, encostados a mim, por baixo de mim, ao meu lado.

Esta semana, a “Gááta!!” saltou para as minhas pernas comigo sentado à frente do computador e aqui ficou, horas, a ronronar. “Rrrrrrrrr, rrrrrr, rrrrrrr, rrrrrr”.

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Procuram qualquer raio de Sol, buscam cada janela, demandam fontes de calor, naturais ou artificiais, veneram todas as esperanças de luz e aquecimento.

Comigo é ao contrário. Continuo a andar descalço o dia todo, mas já não é a mesma coisa. De dia, na rua, passeio de T-shirt, mas à noite já não dá.

Ao longo do ano, estarei sempre duas ou três peças de roupa abaixo da Humanidade, como fazem os camones aqui. Mas como não sou camone, vêm então, a partir desta sazão, as sezões.

Tosses. Nariz a fungar. Dores na garganta. Febre. Constipações. Gripes, parece-me, não sei o que são, felizmente.

Ao Chiquinho sucede o mesmo. A sua asma manifesta-se com as mudanças de temperatura. Com as alterações sazonais, lá começa a tossir.

Tem que ir à sua médica, que o põe a respirar alguns medicamentos preventivos, usando para isso uma máscara de bebé, onde enfiamos a sua cabecinha pequena e linda, forçando-o a aspirar tal profilaxia.

Às vezes não é suficiente, e lá tem que levar uma injecção.

O que as sazões e as sezões nos dizem, na verdade, é que já passou mais um ano e ainda cá estamos.

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Apetecia-lhe viver na rua

Fartou-se de estar num centro de acolhimento onde era bem tratado e magnificamente alimentado e voltou a viver na rua.

Aquilo não era para ele, era “para as pessoas que precisam” (como ele, poder-se-ia talvez acrescentar).

Mas U é uma alma livre, e viver dos favores da sociedade, a que tem direito, aos 84 anos, cego e doente, fazia-lhe confusão.

Continua, de dia e de noite, sentado à frente do cinema, limpinho, a cheirar bem, com um aspecto absolutamente impecável, apesar de ser cego, ter 84 anos e viver na rua.

Esta noite, ao contrário da anterior, está conversador.

Visitava-o todas as semanas no centro de acolhimento e na instituição de saúde, mas, nos últimos meses, queria sempre estar sossegado e tranquilo, não desejava que perdesse o meu tempo com ele e por isso não me recebia.

A ver se me esquecia dele.

Assim, não me via há já uma série de meses. Hoje, pergunta-me pelos meus gatos, se estão bem, se continuam saudáveis, se tudo se encontra conforme.

Questiona-me sobre o livro que estou a acabar de preparar, quer saber o que falta.

A revisão, algo que me aconselhou a pedir a um especialista antes de tentar publicá-lo – junto com muitas outras recomendações não menos preciosas.

Mas que tipo de revisão?

Uma revisão crítica. De um jornalista e editor.

Ah, então muito bem, é alguém que está habituado a fazer esse trabalho todos os dias. E mais?

O tratamento das fotos.

Ah, olhe, se fossem fotos analógicas, tiradas com uma lente Zeiss, não precisavam de tratamento nenhum! Mas está muito bem…

Quando lhe falo dos meus gatinhos, começa a contar-me um conjunto de histórias de alguns felinos maravilhosos que fizeram parte da sua vida, há muitos, muitos anos, noutro país, noutro continente.

Alguns deles, nunca os vai esquecer. Os animais especiais são assim. Como o Jeremias, a Matilde, o Chiquinho, a Amélinha…

As pessoas especiais são assim, como ele, U.

A minha vida vista de fora

Saí e fui passeando preguiçosamente até à bomba de gasolina, onde comprei o jornal. Voltei no mesmo passo lânguido, absorvendo os raios de sol da manhã.

Antes de chegar à minha rua, passei pela artéria que fica uns metros acima, por trás, onde reside um pequeno palacete utilizado por alguma entidade pública.

Sempre tive curiosidade relativamente a este lugar, que vejo quando estou à janela da minha cozinha. À primeira tentativa, só atinjo vislumbres longínquos do meu prédio.

Dou a volta, pelo outro lado, ficando na parte de trás do palacete… Ali está a janela da minha cozinha, poucos metros mais abaixo.

Lá dentro, o meu doce Chiquinho, o meu enérgico Jeremias e a minha meiga Matildinha descansam do seu dia-a-dia agitado e difícil. Amélinha, a ternurenta “Gááta!!”, faz o mesmo, oculta e protegida sobre o armário da cozinha.

Fico fascinado a olhar para eles durante bastante tempo. Dou a volta, torno a entrar no prédio.

O meu vizinho de cima vem meter conversa comigo. Faz hemodiálise regularmente, teve uma doença no coração, tiveram que o abrir e coser e a mulher sofre de cancro.

Foi operada, retiraram tudo e está a recuperar devagarinho. A doença atingiu-lhe as pernas e já consegue deslocar-se cuidadosamente em casa, mas na rua ainda não.

O marido pede-me para não ouvir as notícias do Mundo, alto e fora de horas. Sim, claro que sim, respondo, procurando um buraco no chão onde me possa enfiar e desaparecer.

Mas continuo a pensar na janela da minha cozinha. A minha vida vista de fora.

Estou desempregado há 15 meses. Há um mês decidi não continuar a procurar trabalho na minha área, onde ele não existe. Comecei a concorrer a call centers.

Entro nos de 500 euros sem problemas, nos de 800 euros ainda não consegui.

Num processo de recrutamento passei em todas as provas em inglês – entrevista inicial, entrevisa colectiva, simulação de chamada, testes de gramática, testes técnicos – mas não na entrevista final, profunda, longa e intrusiva.

Num outro processo, foi mais ou menos a mesma coisa.

Continuo a ler e ouvir na língua inglesa, intensamente, dia e noite. Continuo a percorrer laboriosamente oito sites de procura de emprego todos os dias.

Continuo a viver a minha vida, sem saber como vou estar daqui a 11 meses. Continuo a conversar quinzenalmente com pessoas que vivem na rua.

Ao contrário de mim não têm tecto, comida, família, roupa, nada.

Continuo sem saber o que vai suceder daqui a um ano, um mês, uma semana, um minuto. Como todos nós, no fundo.

Chiquinho, um gato especial

É um ser que se alimenta mais de amor, carinho e atenção do que propriamente de comida ou bebida.

Foi assim há sete anos, quando me saltou para o colo pela primeira vez e tomou posse de mim.

Era assim quando saía para ir trabalhar, ele ficava sozinho em casa 48 horas e, quando chegava, preferia vir amassar-me a barriga em vez de ir comer, apesar de estar cheio de fome.

Continua a ser assim hoje. Quando saio de casa e percebe (e ele sabe sempre) que é por mais de meia hora, fica a olhar-me fixamente com aqueles olhinhos brilhantes, inteligentes, possessivos e carinhosos.

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No Domingo, ia eu almoçar com os meus pais, abriu a boca e juro que ia mesmo, mesmo, mesmo falar.

Quando passei a escovar várias vezes por semana o meu doce e sábio Chiquinho, a Amélinha (a “Gááta!!”), a princesinha cinzenta Matildinha e Jeremias, O Gato Sexual, as reacções variaram, e muito.

O Jeremias, o meu lindo lince-gato-cão, deita-se de lado e põe-se em posições em que não consigo escová-lo.

A Matildinha tem que ser persuadida durante muito tempo, tem que estar sozinha na sua divisão-refúgio, a cozinha, e tenho que usar primeiro o pente, menos invasivo, e só depois a escova, o único instrumento eficaz para retirar o pêlo morto.

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A “Gááta!!” acha que aquilo é tudo uma grande brincadeira, dá os seus gritinhos amorosos e irresistíveis de espanto, protesto e diversão, e só quer é morder o pente e a escova.

O Chiquinho vê esta como uma homenagem especial, um acto de mimo. Quer mesmo que o escove (mas sem estar durante uma enorme quantidade de tempo a fazer isso).

Dure esta operação 5, 10 ou 20 minutos, quando eu vou, em seguida, escovar os outros, exige que eu volte a fazê-lo com ele e deixe os seus “irmãos-rivais” em paz. Mia, mia, mia e volta a miar. Quer mais e mais atenção, dedicada e exclusiva.

Quando passou a ter, pela primeira vez, direito a pedacinhos diários de patê (antes não comia nada mais que ração por casa dos problemas de estômago, agora ingere esta pasta especial precisamente para apoiar a sua função intestinal), o Chiquinho experimentou momentos de indescritível felicidade.

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Afinal, havia sete anos que comia ração, apenas ração e nada mais que ração. Quando chega a altura deste petisco, mia, mia e re-mia, antes e depois. Só não o faz durante por razões óbvias.

Mas é a tal coisa: Este é um ser que se alimenta, basicamente, de carinho e amor. No outro dia estava à pressa, fiz a medicação para todos os meus gatos, mas não tive tempo para lhe dar o seu “brinde”, que já provara de manhã.

Sabia que ficaria triste, até porque o tal petisco é, também, uma atenção específica, e esse aspecto não é de desprezar. Assim que acabei de dar a medicação aos outros, peguei-lhe ao colo.

Andei com ele pela casa, dei-lhe beijinhos, fiz-lhe festinhas, disse-lhe algumas palavras carinhosas. Nem um único miado de protesto.

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O que ele gosta mesmo é de sentir que é único para mim, que domina por completo o meu coração. A partir daí, está tudo bem. E a verdade é que não tem mesmo que se preocupar…

A minha gata não me deixa beber

Ao fim-de-semana gosto de me esticar no sofá com um pacote de batatas fritas onduladas, bem salgadas, e um pires de amendoins igualmente condimentados com o mesmo ingrediente.

Meia hora depois, chegaria inevitavelmente o momento de ir buscar uma cerveja estupidamente gelada à parte de trás do frigorífico e consumi-la em dois ou três goles.

Poucas coisas são tão deliciosas na vida como devorar um pacote de aperitivos salgadíssimos seguidos de uma bebida tão gelada como a calota polar, quando já estamos quase a entrar em choque de desidratação e secura labial.

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A questão é que, meia hora depois de me sentar, e mesmo que não tenha esticado as pernas sobre a mesinha da sala, a minha Matildinha já está totalmente acoplada a mim.

Ainda há dias, enquanto via dois filmes de Hitchcock de enfiada, a minha princesa cinzenta esteve várias horas abraçada a mim, feliz, tranquila e protegida.

De vez em quando olhava para a sua “prima”, Amélinha, a “Gááta!!”, com uma expressão meiga, doce e absolutamente inocente, enquanto trocavam umas cheiradelas e umas lambidelas profundamente amistosas.

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Felizmente, a “Gááta!!”, que tem tanto de carinhosa como de demoníaca, não estava virada para atacá-la sem piedade numa fracção de segundo e expulsá-la de imediato do sofá.

No muito pequeno écrã, uma família americana viajava por Marrocos e tornava-se vítima dos efeitos secundários de uma terrível conspiração internacional para assassinar um primeiro-ministro, enquanto desfrutavam das maravilhosas ruas do mercado de Marraquexe.

Horas depois, um horrível assassino londrino degolava mulheres em série com a sua gravata e encontrava a forma perfeita (ou quase) de incriminar um azarado completamente inocente e não ter que pagar pelos seus actos.

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Enquanto tudo isso acontecia, a minha Matildinha continuava encostadinha e agarradinha a mim, perfeitamente indiferente ao Mundo e à realidade.

A tal cerveja acabou por ficar no frigorífico. No fundo, a minha menina está preocupada com a minha saúde. Acha que os salgados em si já são mais que suficientes.

Não é preciso complementá-los com uma dose de vinte e cinco centilitros do cobiçado líquido, a temperaduras aterradoramente baixas.

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A massagem

Sapatos castanhos frescos, abertos e confortáveis, calças castanhas de tecido, pólo de manga curta claro e discretamente colorido, um relógio de pulso grosso, pesado e dourado, o homem cansado e com boa apresentação passa por mim.

Vai sentar-se numa das duas cadeiras de massagem, não para a pôr a trabalhar mas apenas para descansar. Coloca o boné, parecido com a blusa, no pequeno suporte ao lado da cadeira.

Troco dinheiro por algumas moedas de 50 cêntimos e sento-me na do lado enquanto passa pelas brasas.

Com a minha pequena carga de diversos ítens (jornal, livro de bolso de 800 páginas, agenda-bloco de notas), olho para o pequeno suporte no meio das cadeiras.

Abre os olhos de repente, olhamos um para o outro e apressa-se a deslocar para trás o boné, para que eu possa colocar tais objectos volumosos no suporte.

Digo-lhe que não se incomode, não vale a pena, posso perfeitamente deixá-los no chão. Insiste, diz que há espaço para tudo e acabo por aceitar.

Sento-me e coloco a pilha de moedas em cima da minha literatura e da carteira.

Eu uma vez experimentei essas massagens. Mas olhe, no meu caso não faz diferença. Já tenho 80 anos!”. “Pois, por 50 cêntimos é o que se consegue arranjar!”.

Inclino-me para trás, coloco a moeda e a massagem de cerca de um minuto começa. Primeiro os pés, os tornozelos, as coxas. Depois as costas, os ombros, o pescoço, a cabeça.

Fecho os olhos, descontraio-me, deixo-me levar e adormeço por uns segundos. Não é o mesmo que ter alguém com qualidades profissionais e características humanas a fazer-nos uma massagem indiana, ayurvédica ou tailandesa, percorrendo todos os músculos e articulações, desfazendo cada nó e eliminando os focos de tensão, um após outro.

Mas não deixa de ser agradável e relaxante. Além de que uma massagem dessa estirpe custa um pouco mais do que 50 cêntimos.

Holocausto intelectual

Há um filme de 1980 que se chama Holocausto Canibal. É britânico e foi realizado pelo extremamente prestigiado e ainda mais célebre cineasta italiano Ruggero Deodato.

Por muito que me custe dizê-lo, o que me parece é que nos encaminhamos precisamente para um holocausto canibal e terrorista.

Para um sacrifício, imolação e expiação colectiva, para um homicídio metódico de um grande número – milhões – de pessoas.

Nas décadas de 1990 e 2000 a Humanidade continha em si uma certa dose de sabedoria, cultura, ciência, progresso cívico e optimismo. Depois, não se percebe muito bem o que aconteceu.

Estamos a viver numa era de trevas, obscurantismo, cegueira, ignorância e estupidez como até agora não se vira, ou nunca antes fora exposto.

A informática, os computadores, as tecnologias da informação, a globalização e – AH, claro! – as redes sociais não têm culpa nenhuma disto, mas ajudaram a mostrar e tornar esmagadoramente evidente esse estado de estupidez e ignorância colectiva em que todos vivemos.

Estamos mais preocupados em atacar-nos e agredir-nos uns aos outros do que em saber, realmente, o que se passa fora do nosso cérebro diminuto e incapaz, da nossa casa, da nossa aldeia, do nosso país.

A ciência, a cultura, a informação, os meios de comunicação social credíveis e rigorosos (coisa que não conseguimos encontrar em Portugal) passaram a não ter qualquer valor ou interesse para nós.

A verdade deixou de existir. Eu acho que os ciganos, ou os chineses, ou os negros, ou os brasileiros, ou os espanhóis, ou os alemães, ou os holandeses, ou os judeus, ou os muçulmanos são todos iguais, só porque sim, só porque eu assim considero.

Quero lá saber se a realidade, a ciência, a informação ou a vida me provam exactamente o contrário. É assim porque é assim, porque eu acho que é.

Assim pensam os apoiantes de Trump, Le Pen e André Ventura, Passos Coelho e site Observador incluídos. De certeza que não fazem a mais pequena ideia de quais são as palavras da sigla PSD.

O resultado desta estupidificação humana colectiva e planetária está à vista. Trump é presidente dos Estados Unidos. Os nazis, skinheads, fascistas, kukluxklanistas e racistas saíram do covil e voltaram a estar na moda.

A possibilidade de uma guerra nuclear deixou de ser mera fantasia. O tal holocausto está apenas a um passo.

O verdadeiro teste

A minha amiga foi passar fora um fim-de-semana de quatro dias, de que bem estava a precisar. Como a primeira experiência, durante o Verão, correu tão bem, voltou a requisitar os meus préstimos de cat sitter.

A pequena cliente é uma doce gatinha de 19 anos, que, como todos os geriátricos, tem alguns problemas de saúde e precisa de fazer medicação diariamente.

Desta vez as coisas não estavam a ir tão bem: Acolheu-me com a amizade e o carinho de sempre… Mas, quando chegou a altura de tomar a medicação, com um patê suave e apetitoso, foi muito diferente.

Não quis o conteúdo do pratinho. Não aceitou tomar o preparado à colherada. Mesmo com muita insistência, continuou a recusar.

Estivemos bastante tempo nisto, e, depois, deitou-se a um canto, debaixo da cama da dona, e já não saiu de lá.

Se a situação persistisse no dia seguinte, a minha amiga ia ter que desistir do seu fim-de-semana.

Voltei 24 horas depois, e continuava no seu lugar seguro, debaixo da cama. Mas enquanto falei ao telefone com a dona, acabou por sair de lá.

Fechei as portas dos quartos para onde podia fugir, mas continuava a não querer acabar de tomar a medicação, nem com a colher, nem com o dedo nem de forma nenhuma.

Só havia uma coisa a fazer. A sua “mãe” humana disse-me para misturar no molho três ou quatro biscoitos anti-bolas de pêlo, um petisco que a pequenina adora.

Assim fiz. Devorou tudo com a maior rapidez e luxúria.

Ao terceiro dia, quando cheguei, continuava no esconderijo habitual.

Desviei a cama, peguei-lhe (algo muito estranho, já que não é, de todo, uma gata de colo) e deixou-se levar docemente e sem protestos.

Com os biscoitinhos, lá tomou avidamente a mistura medicinal. E, um dia depois, a mesma coisa.

Pelo meio comeu, bebeu, foi à casa de banho e andou à minha volta, miando com satisfação e carinho para o seu amigo das férias.

Tinha andado a fazer charme, como acontece com as crianças e os avós: “Gosto muito de ti mas não vais mandar em mim, vai ser o contrário disso!”.

Conseguimos dar-lhe a volta, com as doses necessárias de manha e criatividade. Depois das dificuldades iniciais, estou a ficar positivamente aprovado como cat sitter!