Em quem votaria Justina?

A velhinha frágil e indefesa, carregando consigo um saco com algum peso, inclina-se e cambaleia para tentar sair da carruagem do metro, e instintivamente todos se viram na sua direcção para ajudá-la. O homem africano do banco da frente, a mulher ucraniana que está ao lado, Justina.

Surgem alguns comentários de circunstância. “Ela nem devia ter que estar a fazer aquilo”.

Pois, mas sabe, estas pessoas idosas estão muito sozinhas e isoladas. Em muitos casos ninguém quer saber delas”.

Na Ucrânia, nós nem sequer temos lares de terceira idade”.

Aqui temos, mas estão quase sempre sobrelotados e muitas vezes não tratam, ou não conseguem tratar as pessoas como deve ser”.

Na Ucrânia, a minha avó e o meu avô ficaram a viver connosco, em casa, até ao fim. Eu agora estou a trabalhar aqui em Portugal, mas tenho que ajudar o meu filho. Ele fez o curso de bioquímico, mas ainda não conseguiu trabalho. Eu, felizmente, estou a trabalhar numa casa muito boa, é como se fizesse parte da família e vivesse lá”.

Eu sei como isso é. Conheci uma senhora, da Europa de Leste, que vivia cá. Trabalhava muito, ajudava a família, e tinha que apoiar o filho, que fez um curso superior e não conseguia encontrar trabalho. Ela acabou por ir para Inglaterra, com mais de 40 anos, com o marido e o filho, para melhorar a vida”.

Pois. Eu não vou sair daqui. Tenho trabalho, sou bem tratada, não tenho razão nenhuma para me ir embora”.

É por vezes idealista e utópico, mas a verdade é que penso sempre que uma mulher como a Justina, se tivesse que optar entre Le Pen e Emmanuel Macron, entre Trump e Clinton, ou entre votar a favor da esperança numa Europa melhorada, social, justa e igualitária ou, em alternativa, um partido fascista, racista, xenófobo, inimigo da Liberdade, da Democracia, da tolerância, da igualdade e dos direitos humanos, não teria dúvidas nenhumas em relação à sua escolha.

Mas depois às vezes surpreendo-me…

Fez com que ele partisse mais depressa

Ia a passar na rua e viu um gatinho envenenado. Estava morto, praticamente, mas ainda resistia e respirava. Nada havia já a fazer.

U. sabia que ele ia morrer, mas ainda ia demorar longos minutos a sofrer até sucumbir. Trabalhara na indústria da saúde, tinha experiência com animais, sabia que não havia qualquer esperança.

Eutanasiou-o da forma menos violenta, para que partisse depressa e não agonizasse mais. Esperou pelo seu fim e foi-se embora. Não foi o primeiro gato ou cão que passou pela sua vida.

Teve alguns e salvou outros. Há 66 anos, tinha ele 18, trabalhava perto de um porto onde havia um ancoradouro de barcaças enquadrado por uma parede intransponível.

Ia para a reunião encomendada pela seguradora onde estava empregado, quando viu uma grande multidão que se demorava, imóvel e expectante, a observar algo lá embaixo. Um cão tentava sair do ancoradouro, sem qualquer hipótese de se salvar sozinho.

Ninguém fazia nada. Observavam enquanto se afogava. Quando o bicho se afundou, U. percebeu que tinha que se mexer.

Engendrou um plano para descer por uma corda, pegar no cachorro ao colo e depois exigir que a multidão o auxiliasse, poupando assim a vida do animal.

A sua iniciativa acordou outro moço jovem e mais forte, que, quando o viu a descer e a molhar-se, decidiu aderir ao projecto. Graças a U., toda a multidão despertou do seu torpor e salvou o pequeno de quatro patas.

A meio destas duas histórias, vivia U. no Brasil, onde alimentava dezenas de felinos com a ajuda de uma vizinha que se ofereceu para ajudá-lo nessa tarefa, por saber que tinha muito mais dinheiro que ele…

A gata de U. era tricolor e chamava-se Malvina, por causa da guerra das Malvinas, ou Maldivas, nos anos 1980. Venerava-o e ele adorava-a.

Havia um vizinho que tinha um cão de caça inteligente, atlético e infalível, especializado em eliminar coelhos.

Os outros cães, a Malvina atacava-os; deste, como também ela era profundamente inteligente, fugia como uma bala. Não teria hipóteses contra um especialista em matar coelhos.

O caçador de quatro patas encurralou a Malvina em cima de uma árvore e U. foi falar com o vizinho, com a sua tranquilidade e sensatez proverbial. Que disse ele?

Sabe, se o seu cão encontrar a minha gata na rua e a matar, eu não posso dizer nem fazer nada em relação a isso.

Mas se ele entrar no meu jardim privado, como acaba de fazer, e matar a minha gata, aí temos um problema, entre mim e o senhor, já que está a entrar em propriedade privada, e o senhor é responsável por aquilo que acontecer.

Disse isto com toda a calma e frieza do mundo, de forma a que não houvesse a mínima dúvida possível. O caçador e o seu dono foram-se embora. E não voltaram.

A gata que se deixa hipnotizar

Agora também pratica a habilidade de abrir armários.

A Amélinha, aliás, a “Gááta!!” tem impressa nos seus genes a obsessão profunda por plásticos.

Muitas vezes, quando estou a arrumar as compras, tenho que me fechar na cozinha, sem ela, para que não roa, morda, destrua e engula todos os plásticos que esta periódica actividade envolve.

Acontece-me acordar a meio da noite, com um barulho meio “Psycho” e ao qual é impossível ficar indiferente. Scratch, scratch, scritch, scritch.

É o som de plásticos a serem destruídos. Mas quais plásticos?! Os que estão dentro do armário, e que ela libertou da sua inglória prisão, abrindo-o durante a noite.

Sempre achei que a minha “Gááta!!” era um ser extremamente obsessivo, determinado e capaz de estabelecer objectivos absolutamente claros, não hesitando diante de nada para os concretizar. E tenho provas disso a todos os dias e todas as horas.

Quando vou à rua ou chego a casa, este ser doce, meigo e negro voa para o exterior da porta do apartamento. Mia, dá gritinhos e protesta porque sabe que, nos momentos seguintes, vou tentar voltar a pô-la em casa. O que não é fácil.

Rebola-se e estica-se no chão, além de fugir de mim velozmente em círculos, para que não consiga apanhá-la, pegar-lhe e reconduzi-la.

Esta bebé de quatro anos e nove meses é plena de originalidades bizarras e enternecedoras. Todos os dias, dou-lhe um pedacinho de comida húmida renal, e outro ao Jeremias, o meu lindo tigre-gato-cão, para que fiquem bem hidratados e os seus rins funcionem melhor.

Às vezes, o Jeremias não quer este petisco. O pratinho fica ao lado dele, ele cheira-o e não lhe pega.

A “Gááta!!”, com a naturalidade mais desconcertante do mundo, termina o prato dela e a seguir limpa o do Jeremias, que está ali perto. “Se isto está aqui, é porque é para mim!”.

Enquanto preparo, duas vezes por dia, os tratamentos da “Gááta!!”, do Jeremias, da Matilde e do Chiquinho, esta pequena pantera doidinha fica ao meu lado. A um milímetro de mim. Praticamente em cima dos pratos com a medicação que estou a preparar. Estática como uma esfinge, ronronando sem fim, feliz e satisfeita com a perspectiva da comida húmida que vai engolir avidamente a seguir.

Se está enroscada nos meus pés, no sofá, pomo-nos a piscar devagarinho os dois olhos ao mesmo tempo um para o outro, o que faz com que ela adormeça. Uma espécie de hipnotismo felino.

Às vezes, isso tem o efeito contrário. Mia, dá um dos seus gritinhos ternos e amorosos e vem para o meu peito, para ficar mesmo bem coladinha a mim, enquanto a abraço, a acaricio e lhe dou beijinhos infinitos. A “Gááta!!” é assim!

Uma reportagem fatal

Ganhei uma montada estranha, para quem só estava habituado a conduzir pequenos automóveis utilitários…

Trabalhava, na altura, numa empresa de telecomunicações. Nesse tempo, já se faziam reportagens em vídeo para alguns sites informativos, e foi isso mesmo que fui fazer.

O tema era um espectáculo de ópera, e as sessões eram em Aveiro. A forma mais eficaz que a empresa encontrou para me colocar lá foi deixar-me usar um carro da companhia, que, por acaso, era um enorme e clássico Saab.

As dificuldades começaram logo à saída.

Era preciso utilizar um apertado e nada prático elevador de garagem, para retirá-lo do lugar onde se encontrava estacionado.

Ao contrário de todas as outras tarefas que a reportagem envolvia, esta revelou-se demasiado difícil. O prestigiado bólide ganhou um risco bem longo e visível na pintura, ainda antes de sair de Lisboa.

À excepção desse detalhe, o trabalho correu bem.

O incidente logístico foi prontamente comunicado aos superiores.

Após o regresso, cruzei-me com o director mais destacado, já devidamente informado. Não fez nenhum comentário, mas se a sua cara e os seus olhos matassem, nunca chegaria a poder escrever estas linhas.

Não houve qualquer consequência disciplinar, o que já não foi mau. Mas aquela organização nunca mais foi a mesma.

Graças a mim, foi criada uma nova norma interna. Os jornalistas daquele departamento que ainda estivessem a contrato, como era o caso, deixavam de poder usar carros da empresa para os seus serviços exteriores.

Para mim, ficou a experiência diferente e surpreendente de conduzir um exemplar dessa marca, de que sempre tinha ouvido falar mas que nunca tinha visto materializar-se precisamente à minha frente.