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“Já entrou no avião?”

Depois de algumas semanas internado involuntariamente numa instituição de saúde, U., ainda que cego, já consegue encontrar sozinho o caminho para a casa de banho. Dedicou-se a estudá-lo e memorizá-lo.

Ao contrário dos outros dias, hoje está mais cansado, debilitado e sem vontade de partilhar as histórias fantásticas da sua vida. Sente o peso dos 84 anos.

Falo-lhe sobre um filme cujo protagonista trai a mulher com a cara-metade de um colega, que descobre o caso e não fica irritado. O autor da proeza, que já antes se sentia ultrapassado pelo seu rival no trabalho, ainda fica mais furioso quando percebe que este não se importou com a traição.

Conto-lhe que um colunista português pediu ao primeiro-ministro, que decretou tolerância de ponto durante a visita do Papa, que ficasse com os filhos dele nesse dia, já que não tinha onde deixá-los.

O chefe do Governo aceitou o desafio e recebeu as crias do jornalista, para que ele e a mulher pudessem ir trabalhar. U. ri franca e alegremente com estas duas narrativas, e diz que o político deu uma resposta à altura.

Digo-lhe que uma grande amiga minha nasceu exactamente no mesmo dia que eu e, por isso, diz que partilhamos o mesmo anjo da guarda. O que, para ela, é uma preocupação.

Já que faz parte da minha vida estar sempre metido em encrencas e confusões, o anjo não tem tempo que sobre para ela, uma vez que cuidar de mim e do meu bem estar é uma ocupação a tempo inteiro.

U. não dá muito crédito à teoria, mas admite que é uma ideia extremamente divertida. Acrescento que, no mês em que faço anos, há imensas outras pessoas que festejam o seu aniversário.

Responde-me que os meses são todos iguais, e em cada um deles nascem muitas pessoas. Mas como este é o meu mês, esclarece, memorizo mais facilmente esses aniversários do que os outros.

A visita do Papa está omnipresente em todos os meios de comunicação, e a televisão da sala de convívio não é excepção. Já que ele não vê, vou fazendo o “relato” em simultâneo.

Ainda está dentro do carro, respondeu a mais uma pergunta de uma jornalista, despediu-se de todos os representantes políticos, militares e religiosos, já entrou no avião, ainda não descolou…

Hoje não estou nos melhores dias”, comenta, em jeito de desculpa. “Não se preocupe, todos temos dias melhores e outros piores. Hoje vai descansar, recuperar e amanhã já se sente melhor”.

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