A Possessão Demoníaca

Sem que isso possa ter qualquer explicação, os meus gatos sempre foram extremamente intelectuais. Há meia dúzia de anos, quando o Chiquinho tentava charmosa, subtil e carinhosamente conquistar-me e tornar-me seu, já isso acontecia.

Lia eu a Fúria Divina, desse célebre e prolífico autor português e jornalista, enquanto comia pão alentejano ao pequeno-almoço, e aquele mínimo e magro ser negro, terno e adorável enfiava-se pelo meio das páginas de debates religiosos inflamados, procurando empenhada e avidamente as migalhas do pão que eu devorava aos primeiros alvores da manhã.

Ao longo dos anos, o Chiquinho, o Jeremias, a Matilde e a Amélinha, a “Gááta!!” esforçaram-se sempre por andar em cima das notícias, disputando comigo as páginas diárias do Público e os suplementos culturais ou de viagens.

A minha biblioteca também não tem descanso, já que estes seres cultos e inteligentes, na sua sede de conhecimento, atacam as minhas prateleiras de clássicos e ficção sem piedade sempre que estou distraído.

Tenho uma onde só se encontram, praticamente, obras cuja impressão conta mais de 50 anos. Aí se refugiou Ana Karenina, de Tolstoi, escondida e virada ao contrário, já que a “Gááta!!”, com o seu carácter profundamente obsessivo, jurou nunca dar repouso àquelas antigas páginas e aos caracteres que nelas ficaram para sempre gravados.

O Homem dos Livros andava há muitos meses, a meu pedido, à procura d’Os Possessos, de Dostoievsky, obra rara, preciosa e difícil de encontrar. Quando fiz anos, finalmente, conseguiu um exemplar dos quatro volumes e ofereceu-mo, para meu gáudio indescritível.

A preciosidade de muitas décadas dividida em quatro partes foi parar à tal estante das raridades, juntando-se, por exemplo, a A Jovem Guarda, de Alexandre Fadéyev.

Não contava, no entanto, com as inesperadas preferências literárias dos meus quatro felinos, nem com a particular inclinação da “Gááta!!” para obras com mais de meio século.

Nessa noite dormia o sono dos justos, pelo que, até que a madrugada chegasse, não me aperceberia do que quer que fosse.

De manhã, dirigindo-me à cozinha, espreitei o fundo do corredor e vi uma pequena montanha de papel. Lá estavam, como é frequente, meia dúzia de livros antigos no meio do chão. No seu cimo imperavam, como não podia deixar de ser, Os Possessos, de Dostoievsky.

Naquele dia comeu cem ostras

Há muitos, muitos anos, estava ele com uns amigos na praia, num país sul-americano. Estavam dois casais com ele, que, na altura, estava solteiro.

Chega um homem a vender ostras. Os amigos não quiseram. Ele queria. Perguntou o preço, e percebeu que era praticamente de graça.

Perguntou ao vendedor se tinha um limão. Fazia sempre isto: Colocava umas gotas de limão sobre a ostra. Se esta se encolhesse ainda estava boa. Se ficasse sem reacção já não estava em condições.

Fez o teste e percebeu que as ostras quase grátis eram boas. Combinou com o vendedor o seguinte:

Vou comer uma dúzia de cada vez. Contamos as cascas, e vou colocando aqui de parte uma casca por cada dúzia que comer.

U. foi comendo até ficar satisfeito. Foram contar as cascas-dúzias… Eram oito. Oito dúzias. 96 ostras. Volta a falar com o vendedor:

Bom, vou comer só mais quatro, para fazer as cem.

Naquele dia comeu cem ostras.

Hoje, enquanto falo com ele, come a mistura adocicada de iogurte e bolachas que lhe servem diariamente, ao lanche, na instituição de saúde onde está involuntariamente internado.

Pergunta-me que novidades há esta semana da França, da Coreia e da América. Digo-lhe que não muitas, os últimos dias foram mais calmos.

Falamos sobre as eleições autárquicas e a candidata do Pessoas Animais Natureza, que apoio convictamente. Pergunta-me se já houve alguma primeira-ministra portuguesa e falo-lhe de Maria de Lourdes Pintasilgo.

Como não é português e vive no nosso país há poucos anos, sabe mais de política internacional do que da nacional. A sua habitual companheira do lado, que já trato pelo nome, mete-se connosco, participa nas nossas conversas e ri-se.

U. diz-me para me apressar o mais possível com os meus projectos pessoais e não perder tempo. E insiste para que faça um chá quente quando chegar a casa, para curar a constipação. “Boa tarde e até breve, meu amigo!”.

“Já não se usam sacos de 50 quilos!”

Sentamo-nos em frente deste homem que já teve um trabalho e uma vida normal e sobrevive agora no chão de uma estação de transportes, com os escassos bens à sua volta, incluindo um par de muletas e alguma roupa. Ouvimo-lo.

Já foi ajudado por instituições de solidariedade como a Comunidade Vida e Paz a procurar um caminho melhor, mas depois, aparentemente, desistiu. Agora diz que tem vergonha de ser visto nesta situação pelas pessoas que, na altura, lhe deram a mão.

Afirma que precisa de conversar. Pede muitas desculpas e comenta “Eu sou, eu sou…”, hesitando na definição. Respondemos-lhe que é um ser humano exactamente igual a nós, ou às outras pessoas que ali passam. Apenas teve alguns azares na vida.

Relata que foi agredido várias vezes e hospitalizado outras tantas. Que cometeu muitos erros, que o levaram à presente condição. Conta que, em tempos, um elemento de uma instituição de solidariedade prometeu levá-lo a uma cidade estrangeira para passear. Ele não acreditava. Mas aconteceu mesmo.

Lembra-se de ter ficado junto à asa do avião, que explica ser a parte mais sólida e resistente, dando até as razões técnicas para que assim seja. Já na altura tinha o presente problema de locomoção, e também o seu orgulho.

Caiu no avião mais do que uma vez, quiseram ajudá-lo a levantar-se mas recusou sempre. Não precisa de apoio, levanta-se sozinho. Fizeram a tal viagem e conheceu tudo o que por lá havia para visitar.

O diálogo continua, sempre com um fio condutor mas sem uma conclusão à vista. Perante a necessidade de apoiar, também, outras pessoas, a equipa despede-se, mostrando-se disponível para o ajudar naquilo que ele precisar e quiser.

Ali perto, há outro homem que pede que uma das equipas dos próximos dias tente trazer-lhe uns ténis. Aos 56 anos, tem no corpo as marcas de décadas a trabalhar nas obras. Os ossos, a coluna, os tendões ficaram afectados por essa existência difícil.

Hoje em dia também há muitas construções bonitas e apelativas pela cidade, mas, para pessoas como ele, isso não tem qualquer vantagem.

Quem contrata fá-lo através de empresas de trabalho temporário, que ficam com uma parte substancial do pagamento. Primeiro paga-se à empresa, e só depois ao trabalhador. E em fatias de 25 por cento, que nunca se sabe quando vão chegar e às vezes até ficam pelo caminho.

As entidades responsáveis pelas obras dizem que já pagaram à empresa de trabalho temporário, e agora o problema é entre esta e o trabalhador.

Numa nota curiosa, R. revela que, hoje, já não são legais os sacos de 50 quilos de cimento, devido às normas europeias. Existem os de 25; 30; e, no máximo, 40 quilos. Os de 50, para quem os carregava dia após dia, de manhã à noite, eram um risco destrutivo para a saúde, e deram cabo da sua.

Não longe deste ser cansado mas resignado, N. e I. estão muito impressionados. Falam sobre uma notícia, entretanto posta em causa, acerca de uma cobra gigante, de muitos metros e algumas centenas de quilos, que teria sido encontrada no Brasil.

Para eles, o relato é totalmente verdadeiro, apesar dos desmentidos entretanto surgidos. E deixou-os com assunto de reflexão para vários dias.

“Não era pão, era um galão”

Saio de casa com o tempo bem cronometrado, para fazer duas linhas de metro e chegar a tempo. Já no local, volto a verificar as minhas notas e percebo que o compromisso é só daí a uma semana.

Repito as duas linhas de metro e chego de novo à minha zona. Para não dar a tarde por perdida, aproveito para ir comprar pão.

À saída do supermercado, há um homem que me pede dinheiro. Ofereço-lhe o pão. Diz que não quer. Ao lado, há outro que aceita rapidamente o saco com dois pães.

Entro no supermercado, para repetir a compra. Vejo o homem que recusara o pão. “Não era pão, era um galão”. “Ah, OK. Sirvam aí um galão, se faz favor”.  A padaria do supermercado está a atender com alguma rapidez, mas o resto do estabelecimento encontra-se à cunha e com filas.

Passo pelas sete mercearias indianas que existem no espaço de poucas centenas de metros. Perto da estação e dos turistas, os produtos custam o dobro se comparados com os de outras lojas indianas a um minuto de caminho, mesmo que nestas já peçam duas vezes o que é cobrado no supermercado.

À porta da minha casa, cinco euros por um pacote de cajus. Um pouco mais acima, e mais longe do local de concentração dos turistas, a quinta loja indiana a contar da estação tem preços mais simpáticos. Mas só tem frutos secos a partir da próxima semana.

Mais uns metros, a subir. Há uma “loja de um euro”, aparentemente em tudo igual a todas as mercearias indianas.

Pesquiso por ali dentro e encontro uns pacotes de “cacahuetes”, amendoins, de 200 gramas, em cujo pacote se lê a palavra “Jumbo”, mas que parecem mais baratos do que os do Jumbo ou do Continente. Custam um euro. Afinal o tempo não foi totalmente perdido. Já tenho sobremesa para o jantar. Por um euro.

O Cassius Clay da favela

Tagarela desejando prestar conforto espiritual, debito as notícias da semana ao visitar U., sábio cego e octogenário internado involuntariamente desde que alguém achou que não devia viver na rua.

Impeachment brasileiro para aqui, destituição americana para ali, lembra-se de uma história. Trabalhava numa grande multinacional de alimentação e mandaram-no ir entregar um documento a um cliente importante que tinha a sua sede no cimo de um morro no coração da favela.

Estava cheio de calor e a morrer de sede. Com o seu fato quente e apertado, entraria na primeira birosca (tasca) que encontrasse e beberia um guaraná gelado.

Assim fez. Mas essa primeira birosca dessa primeira esquina estava repleta de homens negros de tronco nu e desfavorável catadura. Para fazer o pedido tinha que passar por um deles…

Um gigante de cem quilos. Cem quilos de músculo. Trabalhava no porto e carregava diariamente sacos de 60 quilos, de cimento ou café, de manhã à noite. Todos os dias.

Era um monstro de pura musculatura, e o próprio Cassius Clay se levasse um murro dele não ia mais longe.

Dirige-se a U.: Você vai beber um copo de cerveja comigo.

U. não quis submeter-se àquela massa imóvel. Se o outro lhe tocasse voaria como uma pena de pássaro.

Deu a volta por trás do homem de ferro, ignorou-o e pediu dois copos de cachaça da boa. Foram-lhe servidos.

U. responde finalmente ao parceiro acidental: Amigo. Eu não sou bebedor de cerveja. Mas convido-o a beber um copo desta boa cachaça comigo.

A sólida mancha negra ao seu lado ficou sem resposta e sem reacção. Não tocou no copo. U. bebeu o seu e saiu.

Desempregado: A segunda convocatória ao centro de emprego

Perdera o hábito de encontrar na caixa do correio cartas, convocatórias e documentos oficiais relacionados com a minha condição de desempregado, mas naquele dia chegou mais uma dessas epístolas carinhosas do Estado socialista a que pagamos impostos para que depois nos proteja.

Tinha que me dirigir, de novo, ao Espaço Jovem dos Olivais, na sequência da continuação da resolução do meu problema de emprego. Era o mesmo sítio, o mesmo dia da semana e a mesma hora da convocatória de havia dois meses, à qual comparecera respeitosamente.

Desta vez, depois de os 20 e tal desempregados de várias idades serem arrebanhados numa sala de espera e conduzidos a umas catacumbas sinistras onde os telefones não têm rede, tudo foi diferente. Quer dizer, mais ou menos.

Ao entrar, percebe-se que as mesas e cadeiras estão dispostas em círculo… Porra, querem ver que vamos ser obrigados a falar uns com os outros?! Será uma sessão terapêutica, tipo Alcoólicos Anónimos?

A formadora, que é a mesma de há dois meses, explica tudo. Esta sessão de esclarecimento sobre as medidas de apoio ao emprego é exactamente a mesma de há dois meses, precisamente igual.

Aos que estiveram nas duas, pede que assinalemos esse facto na ficha de presença. E que tenhamos o cuidado de guardar por bastante tempo o ofício de convocatória carimbado e assinado por ela, porque, às vezes, mesmo quando os desempregados comparecem, o Instituto do Emprego marca falta, o que dá direito a ficar sem subsídio de desemprego.

Desta vez não há ninguém que precise de ajuda para preencher a ficha de presença. E não existe nenhum chato que esteja meia hora a fazer perguntas sobre o sexo dos deuses à formadora do Instituto do Emprego.

O resultado disto é que a nossa “stôra” despacha tudo num terço do tempo – em apenas 20 minutos. Depois deste período tão logicamente e adequadamente empregue, volto a apanhar a linha vermelha, e depois a linha azul, e regresso a casa.

Ela agora já não me podia magoar

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Para sua grande felicidade, a Amélinha, a “Gááta!!” esteve cinco semanas sem ir ao veterinário. Já eu, não posso dizer o mesmo.

Quando os congestionamentos intestinais do Chiquinho por fim cessaram, levei-a também, na minha deslocação semanal à clínica para o Jeremias e a Matilde fazerem o seu tratamento anti-insuficiência renal.

As cinco semanas tinham sido, claramente, excessivas.

 

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A minha esguia e doce pantera negra gosta de subir por mim acima, saltar para os meus ombros e atirar-se a mim.

Fica sempre indecisa entre trepar dos meus tornozelos até às omoplatas, pelas calças de ganga acima, pular directamente para as minhas costas e afiar as unhinhas na minha T-Shirt ou apenas jogar-se na minha direcção, com gritinhos carinhosos de prazer, de patinhas e unhas em riste, olhar brilhante e determinado, fixando-se então no meu peito e ao meu colo. Algo que ambos adoramos supremamente.

 

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Duas semanas, ou mesmo uma, bastam para que as pequeninas garras da minha venerada cria felina se tornem lâminas Gilette acabadas de comprar, que poderiam facilmente aparar a minha barba de dois dias. Num mês, transformam-se naquelas espadas fininhas e aguçadas usadas nos combates entre espadachins.

Nesses dias, optei por andar despido (a minha “Gááta!!” costuma ter a amável sensibilidade de recolher as suas pequenas armas de Wolverine quando não tenho roupa) ou então ataviado com várias peças de Inverno, o que, com uma temperatura de 30 graus, não será o mais prático, ainda que me proteja.

Quando chegámos à clínica era mais que tempo de decepar as pontas das suas unhas, para que ambos pudéssemos voltar a rebolar e adorarmo-nos um ao outro em plena segurança, sem que surgissem novos riscos vermelhos de um lado ao outro da minha barriga.

Enquanto a Doutora fazia isso mesmo, este ser meigo e apaixonado assanhava-se como um Gremlin, sem se mexer, e ronronava simultaneamente, um mecanismo não só de expressão de luxúria mas também de protecção e auto-cura usado por todos os felinos do reino animal.

Durante o caminho de regresso a casa, ia lançando os seus gritinhos de carinho e lamentação para mim, o culpado de tal crueldade. Em casa, no resto do dia, foi assim.

A minha alminha de quatro patas, o meu coraçãozinho felpudo, exigia miminhos, carinho, mais festinhas e amor, em compensação da maldade que lhe fizera. “Mnhaau, mnheeu, imm, imm, dá-me mimos, dono querido, adorado e mau!”.

Só ficámos a ganhar, no fundo. Nesse dia, passámos ainda mais tempo colados um ao outro, aos beijinhos, a esfregarmos a cabeça, a cara, os braços e as pernas um no outro. Afinal, ela agora já não me podia magoar.

 

 

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“Já entrou no avião?”

Depois de algumas semanas internado involuntariamente numa instituição de saúde, U., ainda que cego, já consegue encontrar sozinho o caminho para a casa de banho. Dedicou-se a estudá-lo e memorizá-lo.

Ao contrário dos outros dias, hoje está mais cansado, debilitado e sem vontade de partilhar as histórias fantásticas da sua vida. Sente o peso dos 84 anos.

Falo-lhe sobre um filme cujo protagonista trai a mulher com a cara-metade de um colega, que descobre o caso e não fica irritado. O autor da proeza, que já antes se sentia ultrapassado pelo seu rival no trabalho, ainda fica mais furioso quando percebe que este não se importou com a traição.

Conto-lhe que um colunista português pediu ao primeiro-ministro, que decretou tolerância de ponto durante a visita do Papa, que ficasse com os filhos dele nesse dia, já que não tinha onde deixá-los.

O chefe do Governo aceitou o desafio e recebeu as crias do jornalista, para que ele e a mulher pudessem ir trabalhar. U. ri franca e alegremente com estas duas narrativas, e diz que o político deu uma resposta à altura.

Digo-lhe que uma grande amiga minha nasceu exactamente no mesmo dia que eu e, por isso, diz que partilhamos o mesmo anjo da guarda. O que, para ela, é uma preocupação.

Já que faz parte da minha vida estar sempre metido em encrencas e confusões, o anjo não tem tempo que sobre para ela, uma vez que cuidar de mim e do meu bem estar é uma ocupação a tempo inteiro.

U. não dá muito crédito à teoria, mas admite que é uma ideia extremamente divertida. Acrescento que, no mês em que faço anos, há imensas outras pessoas que festejam o seu aniversário.

Responde-me que os meses são todos iguais, e em cada um deles nascem muitas pessoas. Mas como este é o meu mês, esclarece, memorizo mais facilmente esses aniversários do que os outros.

A visita do Papa está omnipresente em todos os meios de comunicação, e a televisão da sala de convívio não é excepção. Já que ele não vê, vou fazendo o “relato” em simultâneo.

Ainda está dentro do carro, respondeu a mais uma pergunta de uma jornalista, despediu-se de todos os representantes políticos, militares e religiosos, já entrou no avião, ainda não descolou…

Hoje não estou nos melhores dias”, comenta, em jeito de desculpa. “Não se preocupe, todos temos dias melhores e outros piores. Hoje vai descansar, recuperar e amanhã já se sente melhor”.

“Ela expulsa-me de casa e não me dá dinheiro”

Ouve-se um ladrar barulhento e divertido. Surge repentinamente, muito feliz e sociável, N., a cadelinha doce e carinhosa de G., que vive com ela na rua, à porta de um prédio.

Os voluntários da Comunidade Vida e Paz e da associação Animalife trouxeram ração para a a pequena e perguntam de que precisam homem e companheira canina além de comida.

Tratamentos, vacinação, chip electrónico. A Animalife ajuda no que for possível e necessário.

A bolinha de pêlos afável e meiga, que se estica e esfrega como uma gatinha e não pára de nos pedir atenção e brincar connosco, só tem seis meses. Mas o seu humano diz estar consciente de que ela irá precisar de vacina, chip e esterilização.

A voluntária da Animalife esclarece que uma das marcas de ração que lhe trouxe é mesmo muito, muito boa. A outra é mais fraquinha. O melhor é misturar as duas.

O rapaz que antes não nos dava conversa, desde que descobrimos a existência da sua amiga de quatro patas, não pára de interagir connosco. E aquela bonequinha de pêlo branco e escuro também.

Numa estação de Metro ali perto descobrimos dois músicos que entoam sons melódicos… E três Pessoas Sem Abrigo que não sabíamos existirem.

Todos precisam de comida, atenção, afecto, e um deles de roupa. Ainda há umas calças e uma camisola na carrinha. O homem dos seus 30 anos aceita com agrado.

No meio disto, L., um rapaz com óptimo físico e aspecto passa e mete conversa. Não está propriamente a viver na rua, mas também não tem bem uma casa.

Um dos problemas do moço de corpo seco e cabelo rapado parece ser a namorada. L. recebe o Rendimento Social de Inserção, faz uns biscates aqui e ali e dá-lhe o dinheiro todo.

Segundo ele, a rapariga guarda tudo e não lhe dá nada para as despesas dele: Um café, uma imperial… Até o tabaco para enrolar é racionado, e ele só tem uma pequena quantidade. Ainda por cima, ela insulta-o, falta-lhe ao respeito e expulsa-o de casa frequentemente.

L., que esteve preso, explica que já não trafica droga e que tenta não beber excessivamente. Mas tem outra preocupação. Quando bebe junto da companheira, não há qualquer problema. Se o faz sozinho, o álcool transtorna-o.

É aconselhado a consultar os técnicos do Espaço Aberto ao Diálogo da Comunidade Vida e Paz, sobre as melhores formas de procurar um trabalho e uma situação mais estável, e um especialista que o ajude com as dificuldades relacionadas com o álcool. E a pensar se a sua relação com a namorada, de quem diz gostar, está a ser benéfica para ele.

O Chiquinho ganhou uma nova dieta!

Mascava, mastigava e voltava a remoer, como se tivesse uma pastilha elástica na boca. Além disso, o Chiquinho tinha uma pequena ferida numa pata.

 

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Enquanto isso acontecia, o Jeremias foi à casa de banho sete vezes seguidas, sem pausa. Impunha-se ir ao veterinário no dia seguinte.

A minha Doutora depilou cuidadosamente a barriguinha do Jeremias, fez-lhe uma ecografia improvisada e tentou, em vão, extrair-lhe urina para análise.

Com sete idas seguidas à casa de banho, concluiu-se que só podia ser infecção urinária. Tomou antibiótico, anti-inflamatório e analgésico de efeito prolongado, para duas semanas. Um ou dois dias depois já estava bem.

Com o Chiquinho, a situação envolveu um certo susto. A patinha foi desinfectada e levou um penso, muito bem feito pela minha Doutora. As mastigações tinham a ver com um problema de estômago, ou de intestinos.

Os arranhadores de cartão que estiveram cá em casa quatro meses fizeram um gigantesco sucesso. Os quatro gatinhos adoravam-nos absolutamente.

Nessas pequenas plataformas de papelão rígido, e com elas, faziam tudo o que pudesse passar pela cabeça. Além de as destruírem e engolirem os pedaços, por mais que o seu humano os tentasse impedir. Essa podia ser uma das razões para o problema.

Já se falava numa complicada e dispendiosa ecografia, e até no risco de uma operação. Toda a gente sabe como isso é desagradável, desaconselhável e dispendioso para um gatinho que já tenha cerca de uma década.

A outra razão possível seria o facto de os quatro pequenotes comerem ração para insuficiência renal (porque três sofrem dela), e o Chiquinho talvez precisar de uma alimentação mais adequada para ele, já que tem, desde sempre, algumas fragilidades estomacais.

Este pequeno, adorável e doce príncipe de quatro patas fez então um tratamento de três semanas, e passou a ter direito a duas doses diárias de comida húmida gastro-intestinal.

Com isto, e com a existência do penso na sua pata, o Chiquinho tornou-se ainda mais conversador, comunicativo e preocupado em exteriorizar as suas emoções do que já era desde o início dos tempos.

Antes, durante e depois de ingerir os pedaços do petisco húmido (até porque sempre comeu unicamente ração e nada mais que ração, também por causa dos seus problemas de saúde), mia, mia, fala, conversa e manifesta-se, excitado e eufórico com esta variação no seu menu.

Enquanto andou com o penso, mostrava-se também ainda muito mais carinhoso, carente e exigente de miminhos e atenção do que em todos os dias normais – nos quais já o era.

Quando fomos mudar o penso, ficou sozinho no gabinete comigo e com a minha Doutora. Confia tão incondicionalmente em nós que, comigo a segurá-lo por trás assertiva e carinhosamente, e com a Doutora a agarrá-lo à frente com uma só mão, manteve-se calmo, tranquilo, praticamente imóvel.

A Doutora conseguiu colocar-lhe o novo penso só com a outra mão. Quando se retirou definitivamente a mini-ligadura, dias depois, ficou com aquela patinha branca, em vez de preta, e sem pêlo nessa zona, tornada por isso especialmente frágil.

Umas semanas depois, o pêlo começou a crescer, lentamente, e a patinha tornou a escurecer, devagarinho. Deixou de se lamentar de todas estas perturbações.

Mas as manifestações emocionais, eufóricas e estridentes, na hora da nova refeição especial, mantiveram-se. A consequência positiva dos desarranjos intestinais é que finalmente passou a ter direito a um miminho alimentar especial!