Turistas fartos de Portugal

Olha para a T-shirt, berrante e fluorescente, e faz uns trejeitos com a boca. Depois fita a barriga saliente, ri-se e pergunta se não faço desporto. Digo-lhe que o desporto não é suficiente.

Tem talvez uns 30 e tal anos, figura seca, roupa descontraída. Diz que não está a gostar de Lisboa, de Portugal e dos portugueses. Afirma que é de Espanha, mas fala com a amiga numa língua que parece claramente da Europa de Leste.

Comigo, mistura espanhol, italiano, inglês e português. Diz que há muita gente em Lisboa, que os portugueses não falam e que os espanhóis são mais simpáticos.

Acrescenta que em Lisboa não há nada de interessante para ver. Exemplifico com os monumentos e as igrejas. Responde que não há museus para visitar.

Pergunto-lhe se tem um guia em papel para se orientar. Acena que sim mas não parece perceber a pergunta.

Falo-lhe de Belém, do Mosteiro dos Jerónimos, do museu que pode encontrar ao seu lado, dos jardins e do Centro Cultural de Belém. Também não parece conhecer nada disso.

Pergunta-me se há ilhas em Portugal. Digo-lhe que sim, os Açores e a Madeira. Que são muito bonitas e devia visitá-las.

Parece interessar-se, mas declara que não vai dar para fazer isso agora. Vai ter que ficar para outra vez.

Sai do café e volta a entrar duas ou três vezes. A sua amiga olha para mim disfarçadamente e ri-se. Põe-se a falar ao telefone, na tal língua que soa a Leste, mostrando-se muito convicta e irritada.

Passa mais um bocado, ninguém decide aprofundar o diálogo e a dupla acaba por se ir embora, tão discretamente e sem aviso como encetou os primeiros momentos de conversa, meia hora atrás.

No final de Março a cidade já está totalmente repleta de turistas. Mais dois meses e será inimaginável.

Haverá muitos deles a considerar que a metrópole é uma confusão, cheia de pessoas que não falam com eles e sem pontos de interesse para visitar?

Alguns portugueses dizem que estão fartos dos turistas… Resta saber se os visitantes estão a gostar do que vêm ver.

“Porque é que me hei-de calar?!”

Entro numa de duas igrejas dispostas uma de frente para a outra, na zona mais cosmopolita e turística da cidade. Buscando sossego e frescura, sento-me. À entrada, ninguém pergunta se acreditamos na existência de deus.

Procuro perceber se decorre alguma missa barulhenta e incomodativa, ou algo igualmente perturbador e entediante. Há apenas uns moços à paisana salmodiando cânticos pascais, eventualmente dirigidos por um superior religioso.

O som da cantoria é até agradável e relaxante. Avizinham-se alguns momentos de tranquilidade agnóstica. De repente, entra um grupo de portuguesas, mães e filhas.

Conversam tal como se estivessem na tasca ou no bar da kizomba e das caipirinhas, ali a meio quilómetro de distância. Já que não estou em tal lugar para rezar ou receber dos céus a graça divina, fico calado.

O rumor sobe de intensidade. Um casal de estrangeiros olha-as, escandalizado. Salta-me a tampa, e os meus tímpanos ateus ouvem sair da minha garganta: “Isto é uma igreja. Vieram para aqui conversar?”.

As senhoras fazem um ar incomodado e um olhar de quem se sente profudamente injustiçado e remetem-se ao silêncio.

Do outro lado, um casal português e idoso fala animadamente. Ela acaba por mandá-lo baixar a voz. Mostra-se profundamente indignado. “Porque é que me hei-de calar? Qual é o problema? Porque é que me hei-de calar? Não me vou calar”. Dada a gressividade do ancião, ela desiste, e eu também.

Acaba por ser um funcionário local que consegue silenciá-lo. Embora de má catadura, perseguindo o rapaz com olhos faiscantes, cede.

Faz lembrar uma cena parecida, mas numa sala de cinema, durante o filme. Um dos três ou quatro espectadores decide atender o telemóvel e falar calma e tranquilamente, em voz alta, tal qual como em casa ou na rua.

Umas fila atrás, há um homem que se insurge e lhe diz que não pode efectuar chamadas naquele local. O visado responde:

Você está a mentir! Porque é que me está a acusar de uma coisa que eu não estou a fazer? Eu não fiz uma chamada, eu atendi uma chamada! Já viu, agora destruiu-me a cena do filme que eu estava  ver! Não se faz!”.

E continua, com a maior tranquilidade do Mundo, a ver o filme e a falar ao telemóvel como se a sala fosse um café.

A eliminação de todo o sofrimento

Do outro lado da porta, duas mulheres, com bom aspecto e apresentação, e ar inofensivo. Abro, tentando perceber o que querem.

Uma delas fala comigo em português do Brasil, com a descontracção própria dos naturais do país. Tem um convite para me fazer.

Quer que assista à comemoração da morte de Jesus, e entrega-me um papel que diz isso mesmo.

A pequena folha dobrada em duas tem na capa um desenho com um grupo de pessoas de várias idades e etnias, felizes, tranquilas e pacíficas, num vale fértil e inspirador, cheio de árvores de fruto, aves, rios e arbustos.

Promete paz, saúde e prosperidade e fala de um evento público de entrada livre. Do lado de dentro, algumas referências bíblicas e o enquadramento histórico ou religioso.

Um profeta divinamente inspirado previu um tempo em que o homem estaria em paz com a natureza. Jesus, afirma o folheto-convite, realizou obras poderosas, mostrando que as profecias se tornariam realidade.

A morte de Jesus “foi tão importante” que ele ordenou aos seus discípulos que a comemorassem. A sua morte “é fundamental” para a eliminação de todas as causas de sofrimento…

Assim, a comemoração da morte de Jesus foi agendada para terça-feira, dia 11.

Os convidados das testemunhas de Jeová são desafiados a perceber como esta morte os pode beneficiar – a eles e à sua família.

Não estou convencido que a morte de Jesus tenha alguma relevância ou utilidade para a humanidade. De qualquer maneira, esta gente jovem e de aspecto apelativo simboliza uma mudança.

Nos anos 1980, quem procurava adeptos para o culto das testemunhas de Jeová cabia em duas categorias. Ou eram pares de velhinhas muito insistentes e convictas, que o pessoal tentava despachar rapidamente, ou duplas insípidas, com homens de fatinho e gravatinha, e o ar postiço de quem nada tinha a ver com aquele guarda-roupa.

Do lado da abordagem e da imagem pessoal, estes crentes modernizaram-se. Quanto aos princípios em si, é possível que não tenham mudado muito. Mas também, não faço a mínima ideia de quais são.

Parecia Marrocos mas não era

Tinha acabado o meu primeiro ano a dar aulas (continuando simultaneamente a trabalhar como jornalista). Estava exausto, arrasado e extremamente feliz. Estava de férias.

Saí de casa com um saco com duas ou três T-Shirts, com o objectivo de rumar ao Malavado, ao pé da Zambujeira. Passei uns dias abençoados no Alentejo com os meus pais, em que a minha função era comer, beber, dormir e deixar-me conduzir para a praia, onde lia os meus livros e me escondia do sol à sombra.

Os meus pais foram-se embora e vieram os meus amigos. Mais jantaradas, copos e guarda-sóis. Dias depois estávamos a caminho de Marrocos, de carro. Pelo menos era esse o plano.

Andámos pelo Sul de Espanha, comendo, bebendo, acampando, apreciando as belezas naturais e humanas do país. Enquanto o Pedro parava numa bomba de gasolina para ser multado por ter entrado “à queima” na via para a qual se se dirigia, eu dava conversa à menina da Galp, que era gira de morrer.

O carro do Zé avariava e eu andava a passear pelas ruas, encetando diálogos com indígenas locais, sempre afáveis e amáveis. Tínhamos um diário que dizia na capa qualquer coisa como “Marrocos talvez 2002 – Life can be so… Simple”.

À noite, as cervejas e as Margueritas punham-me a falar a minha versão muito peculiar de Espanhuel, que nem os castelhanos nem os tugas perceberiam.

Desatava a cantar o Nueva Iuerque, Nueva Iuerque do Frank Sinatra em Espanhuel. De tal maneira que o Pedro e a Teresa tinham medo que eu me avariasse, acordasse a falar espanhol e não fosse mais capaz de pronunciar palavras na língua de Camões, que devia dar voltas no túmulo junto com Cervantes.

O objectivo era Marrocos, só que nesta viagem imprevista e improvisada ninguém levou passaporte. Chegámos onde era possível, a Ceuta, que, na altura, classifiquei como um esgoto ou subúrbio da Europa. Não era Ocidente nem África, não era carne nem era peixe.

Aterrámos num restaurante muito, muito manhoso, onde toda a comida parecia ter vindo de um bazar de alimentos fora de prazo. Não havia fruta.

Pedi sobremesa. Apresentaram-me uma lata enorme de pêssego em calda, nitidamente oriunda dos tempos da Segunda Grande Guerra, ou da Guerra Civil Espanhola. Aceitei e sobrevivi-lhe.

A nossa primeira viagem a Marrocos não foi bem, bem a Marrocos. Mas o que não faltou foi diversão, tontería, maluqueira, descontracção, copos e amizade. É que, na altura, a vida podia mesmo ser muito, muito simples!

O Pregador

Tem o olhar convicto e profundo daqueles que interpretam os textos sagrados à letra, sem qualquer mediação ou espécie de dúvida.

Na mão direita a Bíblia, na esquerda o recipiente com água fresca para molhar a garganta. Calças azuis, blusa e casaco cinzento, cabelo escuro, uma barba simples e elegante, lembrando os intelectuais da Era Clássica.

O homem dos seus vinte e poucos anos tem uma missão. Trazer-nos a Paz de Cristo. Prega durante horas a fio, para uma dúzia de ouvintes surpreendidos por tal fervor religioso.

Está no centro da cidade, em hora de ponta. Vai lendo passagens d’O Livro, que usa para dar força às suas proclamações divinas.

Revela que foi viciado em drogas, álcool e pornografia. Hoje já não peca e encontrou a Luz e o Caminho, graças a Cristo.

Durante horas incita-nos a não viver mais da mesma maneira, a abandonar as substâncias proibidas e a deixar de fornicar.

Intervala cada conjunto de frases com um (…) “, minhas pessoas”, dirigindo-se enfaticamente a nós. As minhas pessoas somos nós.

Diz que, agora, vê claramente as trevas, as chamas, o Inferno e a maldade à sua frente, debaixo do chão, perante os seus olhos. Relata que só há um caminho entre a maldade e a bondade, as trevas e a luz, sem qualquer possibilidade intermédia.

O pequeno grupo de estrangeiros e nacionais, que vai alterando a sua composição, ouve-o atentamente. Alguns de semblante sério e pensativo, outros rindo com comentários jocosos. “Quando ele ficar sem voz, Deus vai pô-lo a falar outra vez!”.

Não fala de Igrejas, de padres, de homens do clero. Fala da Salvação das Almas. Jesus salvou-o e trouxe-o aqui, para que também nós possamos receber a divina luz e sentir a Graça dos Céus.

Teremos que submeter-nos, porque só o filho do Senhor é o Amor e o Bem. Todos os que não o reconhecem erram e andam mal.

Haverá duas ressureições, a dos corpos e a da condenação. Ele já sabe que vai receber dos Céus um corpo novo, perfeito e incorruptível, e propõe-nos idêntico benefício.

Recorda sempre que há apenas um caminho a escolher e a seguir. Porque o Inferno, as chamas e as trevas foram feitos para alguém. Para os que pecam e se desviam do caminho.

Meia hora de pregação leva à única conclusão possível. É tempo de ingerir uma cerveja, umas batatas fritas, uns cogumelos e temperar tudo isso com a leitura de algumas das melhores obras do Marquês de Sade.

Era óbvio que não fomos feitos um para o outro

Foi o primeiro carro que comprei. Vivia na Margem Sul e trabalhava numa revista em Lisboa, com um patrão prestável que, depois de eu ter tirado a carta e ter dado um fim inglório ao valente e audaz Morris Marina idoso que o meu pai me oferecera, quis dar-me uma mãozinha.

Foi comigo a um comerciante de automóveis seu conhecido, negociámos o preço e trouxe um Renault Super Cinco cinzento metalizado em segunda mão. As conversas de vendedor são sempre mais ou menos parecidas, pelo que não as tomei como um indicador de estar a fazer um bom ou mau negócio.

O meu tio tinha vivido em França e trabalhado na Renault, e dizia que este era um carro com um motor “muito nervoso”: Andava bem e acelerava bastante, é um facto.

A verdade é que, desde os primeiros tempos, começou a precisar de peças e mais peças, reparações e novas reparações. Em muito pouco tempo, tinha gasto nos arranjos bem mais do que paguei por ele.

De vez em quando começava a não querer pegar, e isso podia sempre ser por inúmeros motivos. Até se acertar com a razão, havia que continuar a investir.

Era uma complicação ter que empurrá-lo, de manhã, antes de tomar o pequeno-almoço – especialmente porque nem sempre dava para deixá-lo numa descida, ou mesmo num plano recto.

Lembro-me de vir da Costa da Caparica, na faixa da esquerda (não dava multa), com o motor em greve e uma fila de automobilistas furiosos a apitar atrás de mim. Ou de empurrá-lo, ele ganhar balanço e ver uma amiga minha a mergulhar pela janela, com um vestido bem curto e florido, para puxar o travão de mão antes que ele se espetasse contra algo ou alguém.

Quando ia de férias para a Zambujeira, tinha que se desmontar o banco detrás e tirar as malas do porta-bagagens por aí: Ele só tinha uma chave, e o porta-bagagens só abria com ela… Mas, se a retirássemos da ignição, ia abaixo e já não pegava. Primeiro tiravam-se as tralhas, e depois ia estacioná-lo. Numa descida.

Acabou por não ter uma vida muito longa. Nos seus últimos dias de existência, antes de o despachar por tuta e meia, já só conseguia andar em segunda. Embora ainda metesse respeito.

Acelerava, acelerava, acelerava, deitava fumo e fazia barulho como um foguete. Nunca percebi se encontrou o dono errado (eu) ou se foi a minha pessoa que teve pouca sorte em calhar com ele. De uma forma ou de outra, a conclusão óbvia é que não fomos feitos um para o outro!

“Estavam a cumprir ordens. Isto chama-se sequestro”

“Sabe dizer-me onde está aquele senhor que vivia na rua e foi trazido para aqui?”. “Sim, sim, já vieram visitá-lo. É este senhor aqui da lista, está nesta secção”. “E onde fica isso?”. “À esquerda e depois em frente”. “Obrigado”.

Dezenas de minutos de voltas e falsos alarmes depois, o edifício surge, grande e imponente. Há uma campainha, que é necessário tocar para entrar. “Já não está aqui, está ali no primeiro piso”.

Mais uma vez, também há uma campainha para tocar e uma funcionária que abre a porta. Surge um homem simpático e amável, residente mas não funcionário, que conduz à sala certa.

“Tenho estado com ele, a apoiá-lo. Acho que ele agora está mais alegre. Vou com ele à casa de banho, dou uma volta com ele aqui dentro, dou-lhe cigarros”.

Finalmente aparece, a um metro de distância, sentado num sofá. Cabelo muito curto, barba aparada, muito magrinho como sempre, descalço, de pijama e roupão.

“Então, como está?”. “Está tudo bem, estou vivo”. “Soube que o tinham tirado da rua e trazido para aqui, vim ver como estava”. “Obrigado!”. Sai uma pergunta estúpida, motivada pela vontade de conversar com ele.

“Está aborrecido?”. “Experimente vir aqui para o meu lugar. Eu fico onde você está e você fica aqui”. “Pois, claro, tem razão”. “Obrigaram-me a vir para aqui. Não têm o direito a obrigar-me a estar aqui”.

“Trataram-no mal?”. “Não, não, as pessoas que me trouxeram para cá estavam apenas a cumprir ordens. É o que acontece nas ditaduras. Isto chama-se sequestro. Desde que vim para Portugal já me internaram três vezes, embora eu não tenha quaisquer problemas psiquiátricos”.

“E como são as pessoas aqui dentro?”. “São pessoas. As pessoas que estão aqui dentro são as pessoas que estão lá fora. É a mesma coisa”.

Como ele, hoje, pouca coisa diz, falo-lhe da recente visita dos voluntários da Comunidade Vida e Paz às Comunidades de reinserção.

Depois disso, conto-lhe tudo sobre o veganismo. Afirma que, segundo os bioquímicos, precisamos de comer clara de ovo, devido à presença de seis aminoácidos essenciais que, de acordo com os referidos cientistas, não existem em mais nenhum alimento.

Não seguirei a recomendação, mas, naturalmente, não discuto. É a primeira vez que lhe falo tanto sobre mim.

Explico-lhe que a vida dele já inspirou muitas histórias do Cronista Sem Abrigo. Sorri e acena em sinal de aprovação.

Uma hora depois, despeço-me deste homem sábio e humilde. Agradeço ao seu novo amigo, por encontrar tempo, disponibilidade e vontade para apoiá-lo e ajudá-lo nesta nova fase da sua vida.

À saída, volto a passar pelas duas portas que se fecham à chave atrás de mim. E volto a pensar.

Este homem, que conheço há anos, não tem quaisquer perturbações psiquiátricas. É, até, das pessoas mais cultas, sabedoras e interiormente ricas que já conheci.

Vivia na rua e está agora internado nesta instituição. Tem 84 anos e uma saúde frágil. Aqui, naturalmente, a sua saúde será vigiada e acompanhada. Mas a liberdade e a felicidade que dizia sentir na rua, essas, nunca poderão dar-lhas aqui.