A jangada de latas

Já nos conhecíamos desde o ano lectivo anterior. O Pedro era uma espécie de figura tutelar, que também andava pelos 16 anos, como eu, mas com muito mais juízo. Fazia o que podia para que eu não levasse longe demais as minhas loucuras de pós-adolescente.

Juntávamo-nos em casa dele, nós e a Lassie, aquele tufo de pêlos carinhoso e paciente que acompanhou toda a parte fundamental da nossa juventude. Ouvíamos o som cru e contestatário dos primeiros álbuns dos Xutos, na aparelhagem dele, em discos que ele gravava em cassetes e eu escutava num gravador na minha casa.

Ele tinha um Timex 48 K e um gravador áudio, que, somados, constituíam o supra-sumo da computação, à época. Esperávamos, ouvíamos a cassete do jogo entrar e fazer uns barulhinhos idênticos aos de um fax a chegar… Depois, jogávamos!

O Pedro tinha em casa umas revistas de jogos de computador, em inglês. Língua em que eu era craque. Naquelas férias de Páscoa, decidimos que íamos levar avante uma das nossas quimeras de miúdos. Umas concretizaram-se, outras não, como a ideia de construir uma jangada de latas.

Esta era mais realista. Queríamos, em conjunto, criar uma secção jornalística de jogos de computador. O Jornal do Barreiro funcionava por assinaturas e não tinha muita expressão. A Voz do Barreiro parecia coisa mais séria e credível.

Parece-me que da primeira vez que aparecemos estava lá o vice do sítio, que se identificou como tal, e viria, anos depois, a ser um jornalista de prestígio nacional e além fronteiras.

Mais tarde ou mais cedo acabámos por apanhar o Boss, o Dr. Baião, licenciado em ciências sociais e nos prazeres da vida. Cumprimentava-nos dizendo “Oláá Jóóvens!!!”.

A nossa ideia foi imediatamente ampliada por ele. Arranjámos uma equipa e criámos um suplemento periódico, com várias páginas. Jogos, poesia, notícias, letras, artes, exposições. Um espaço cultural de e para gente nova.

Foi nesta vida que conhecemos  “o velho dos pombos” e “o velho dos ranchos”, dois homens de certa idade e muita paciência que eram colaboradores do jornal e aturavam as nossas palermices.

Tínhamos direito a visitas à gráfica, onde imperava o Monteiro, ar meio putanheiro, o dono do jornal. A festas, onde às vezes se bebia até cair. A conhecer as personagens miríficas que, então, povoavam a Imprensa local.

Havia outro cronista, o Matoso, que tinha uma rubrica chamada “Repar(ando)”. Aparentemente, ele ia andando e reparando nas coisas.

Essa aventura acabou por se prolongar e ocupar a minha vida dos anos seguintes. Deste jornal passei para outros, para as rádios, para o curso de Comunicação Social… Mas essa, é outra história!

“Quando compras um pacote de leite pagas a violação de uma vaca” “Hã?!”

“Cada vez que compras um pacote de leite estás a pagar a violação de uma vaca”.

“O quêê?!? Isso não é uma opinião. É uma parvoíce. É uma treta”.

“Tu achas que os mihões de vacas que são obrigadas a estar grávidas a vida toda, para darem leite, e cujos vitelos lhes são retirados e mortos, querem fazer isso?”.

“Não é uma questão de vontade, é uma questão de instinto. Não têm vontade”.

“Então as vacas, os porcos, os cães e os gatos não têm vontade, não têm sensibilidade, não têm consciência? Só têm instintos?”.

(Vira-se para a pessoa que está atrás).

“Está a ver, estamos aqui a ter esta discussão porque esta pessoa se tornou vegan”…

“Pois, eu crio animais para os matar e os comer, mas garanto-lhe que eles não passam a vida a sofrer”.

“Sim, é como ser contra as touradas. Em Espanha, matam os touros no fim das touradas, e eles não ficam a sofrer. Eu gosto da parte da ‘dança’ com o toureiro”.

“Então tu achas que ao longo daquelas horas em que os touros estão a ser espetados com ferros e bandarilhas, eles estão contentes e felizes?”.

“Não, eles têm uma capa de sangue que os protege!”.

“Olhem, eu digo-vos uma coisa. Eu vim ao Mundo para sofrer. Desde que nasci que sofro, sofri a vida toda e ainda vou sofrer muito mais. O touro, até ao momento da tourada, é completamente feliz. E depois, naquele momento da tourada, sofre…”.

“Sim, e além disso, uma grande parte dos vegans, que não comem carne nem produtos de origem animal e se preocupam com os animais, são uns fascistas que não querem saber das pessoas para nada. São capazes de ver uma pessoa quase a morrer e não fazem nada”.

“Bem, acredito que haja gente estúpida entre os vegans, tal como entre os carnívoros. Mas o facto de nos preocuparmos com os animais não quer dizer que não nos preocupemos com as pessoas. Um coisa não impede a outra. Para falar a verdade, já me preocupava com as pessoas muitos anos antes de me preocupar com os animais. Mas enfim, é melhor ficarmos por aqui. Acho que nunca vamos chegar a um acordo!”.

“Foi uma tentativa de homicídio. Alguém vai pagar”

Olha para nós com um ar desvairado.

“O que te aconteceu?”.

“Fez oito dias na segunda. Estávamos deitados, a dormir, na barraquinha de caixotes de cartão. De repente senti calor nos pés e acordei. Dei um pontapé na caixa da parte detrás e saímos os dois, eu e o meu marido.

Foi tudo tão rápido. Eu quase não me queimei, ele queimou-se na mão e no braço. Ainda tentei pegar na mala com os documentos, mas desisti. Ficava lá a mala e ficava eu.

Ele está no hospital há vários dias, diz que não percebe porque é que não lhe dão alta já. Mas primeiro tem que recuperar.

Vão ajudar-me a fazer um novo cartão do cidadão, e pagar, porque fiquei sem nada.

Ele não queria que eu viesse hoje para aqui arrumar, mas tenho que fazer algum dinheiro. Fiquei sem a medicação, sem os comprimidos, sem a roupa, sem o calçado, sem nada. Mas Deus é grande e encontrei a seguir um saco com uns ténis.

Eu tenho cem por cento de certeza de quem fez aquilo. Encontrei um garrafão com vinho e com mais outra coisa que tinha um cheiro esquisito, lá na relva.

Foi tudo tão depressa. É claro que foi fogo posto, ou nunca pegava tão depressa. É tudo muito estranho. Isto é uma tentativa de homicídio. E a pessoa que fez isto vai ter que pagar”.

A existência do casal, que vive na rua, arruma carros e lida com todas as dificuldades que estão relacionadas com essa condição, acaba de ficar muito mais dramática.

Depois de mais dois dedos de conversa, despedimo-nos, com a intenção de trazer mais alguma coisa útil na próxima Volta da Comunidade Vida e Paz em que passarmos por eles. E com o registo exacto do lugar onde pernoitam agora, igualmente ao relento.

Horas depois, estamos junto do profeta e pensador da calçada. Faço questão de ser o primeiro a sair, atravesso a estrada num instante, na convicção de que, depois das nossas centenas de conversas, este homem sábio e cego de 84 anos reagirá positivamente à minha voz, mesmo que não me reconheça de imediato.

“Boa noite. Ah, é o último saco que estão a distribuir? Então tenho que aceitar. Vocês querem que eu volte para o meu país, mas eu não vou fazer isso! As instituições deixaram de me dar comida porque querem que regresse para lá, mas não o vou fazer! E depois trazem-me dinheiro, que querem que eu aceite.

Deram-me 75 euros, já rasguei metade dessas notas e deitei fora. Agora vou rasgar estas metades em vários pedaços, para jogar no lixo amanhã”.

Rasga as notas perante os nossos olhos. As metades das notas que, inteiras, perfariam 75 euros, desfazem-se entre os seus dedos à nossa frente.

“O mundo não está com Cristo, por isso não está bem. Diga-me uma coisa, acha que o Planeta está em guerra? Sim? E em que tipo de guerra está? Não, o Mundo está apenas numa guerra económica. Nada mais.

É a guerra entre as nações mais industrializadas do Planeta. Esta situação nunca aconteceu, em toda a História da Humanidade. A Terra está em guerra, numa guerra unicamente económica. E isso não vai ter um bom resultado. Boa noite!”.

Tenho a mania de não abastecer o carro

Tinha tido um acidente imponente e inquietante uns quanto meses antes, cujo estrago foi tão grande que até dava para comprar outro carro (pelo menos), e que deixou o condutor vivo graças a um verdadeiro milagre.

Algum tempo depois, na auto-estrada para o Barreiro, de repente o bólide começa a fraquejar. Atacado pela mania de deixar o veículo gastar até à última gota de combustível, andava sempre com ele na reserva. “Verificar Injecção”, disse-me ele.

Teve que levar uma nova bomba de injecção, bomba de água, bomba de óleo e correia de distribuição. E a primeira destas peças, “de certeza”, só teve que ser substituída por causa da tal mania de não o abastecer.

Serviu de emenda, amarga e cara, porque todas as peças custaram umas cinquenta vezes o seu peso em moedas de dois euros. Nunca mais o tanque andou abastecido, quase, a ar.

Apenas umas semanas depois, de novo na auto-estrada, a mesma mensagem. “Verificar Injecção”. Como?! A viatura foi deixada no Barreiro, Domingo, para que, na mesma oficina que o arranjou, detectassem que raio se passava.

A viagem de volta a Lisboa foi feita no Clio cinzento do Sr. Ventura Sénior, que tem 16 anos e se encontra em melhor estado e com menos humores e caprichos do que este seu concorrente mais novo, a gasóleo, com pouco mais de metade dessa idade.

Segunda-feira, oiço a voz do meu pai, tranquila, do outro lado do telefone. “Olha, o carro não tem nada. Foi um amoque temporário. Tens que ir vigiando, e, aos 175 mil, fazer a revisão. Na oficina disseram para fazeres nessa altura, embora ele também já mostrasse as palavras ‘fazer revisão’ e o desenho da chave de fendas”.

E assim começa a semana com uma boa notícia. As boas notícias são sempre bem vindas.