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“Foi uma tentativa de homicídio. Alguém vai pagar”

Olha para nós com um ar desvairado.

“O que te aconteceu?”.

“Fez oito dias na segunda. Estávamos deitados, a dormir, na barraquinha de caixotes de cartão. De repente senti calor nos pés e acordei. Dei um pontapé na caixa da parte detrás e saímos os dois, eu e o meu marido.

Foi tudo tão rápido. Eu quase não me queimei, ele queimou-se na mão e no braço. Ainda tentei pegar na mala com os documentos, mas desisti. Ficava lá a mala e ficava eu.

Ele está no hospital há vários dias, diz que não percebe porque é que não lhe dão alta já. Mas primeiro tem que recuperar.

Vão ajudar-me a fazer um novo cartão do cidadão, e pagar, porque fiquei sem nada.

Ele não queria que eu viesse hoje para aqui arrumar, mas tenho que fazer algum dinheiro. Fiquei sem a medicação, sem os comprimidos, sem a roupa, sem o calçado, sem nada. Mas Deus é grande e encontrei a seguir um saco com uns ténis.

Eu tenho cem por cento de certeza de quem fez aquilo. Encontrei um garrafão com vinho e com mais outra coisa que tinha um cheiro esquisito, lá na relva.

Foi tudo tão depressa. É claro que foi fogo posto, ou nunca pegava tão depressa. É tudo muito estranho. Isto é uma tentativa de homicídio. E a pessoa que fez isto vai ter que pagar”.

A existência do casal, que vive na rua, arruma carros e lida com todas as dificuldades que estão relacionadas com essa condição, acaba de ficar muito mais dramática.

Depois de mais dois dedos de conversa, despedimo-nos, com a intenção de trazer mais alguma coisa útil na próxima Volta da Comunidade Vida e Paz em que passarmos por eles. E com o registo exacto do lugar onde pernoitam agora, igualmente ao relento.

Horas depois, estamos junto do profeta e pensador da calçada. Faço questão de ser o primeiro a sair, atravesso a estrada num instante, na convicção de que, depois das nossas centenas de conversas, este homem sábio e cego de 84 anos reagirá positivamente à minha voz, mesmo que não me reconheça de imediato.

“Boa noite. Ah, é o último saco que estão a distribuir? Então tenho que aceitar. Vocês querem que eu volte para o meu país, mas eu não vou fazer isso! As instituições deixaram de me dar comida porque querem que regresse para lá, mas não o vou fazer! E depois trazem-me dinheiro, que querem que eu aceite.

Deram-me 75 euros, já rasguei metade dessas notas e deitei fora. Agora vou rasgar estas metades em vários pedaços, para jogar no lixo amanhã”.

Rasga as notas perante os nossos olhos. As metades das notas que, inteiras, perfariam 75 euros, desfazem-se entre os seus dedos à nossa frente.

“O mundo não está com Cristo, por isso não está bem. Diga-me uma coisa, acha que o Planeta está em guerra? Sim? E em que tipo de guerra está? Não, o Mundo está apenas numa guerra económica. Nada mais.

É a guerra entre as nações mais industrializadas do Planeta. Esta situação nunca aconteceu, em toda a História da Humanidade. A Terra está em guerra, numa guerra unicamente económica. E isso não vai ter um bom resultado. Boa noite!”.

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