“Dê-me gasolina para o avião, se faz favor!!”

Foi pouco depois de 1965. Quase ninguém tinha televisão em Portugal, e mesmo os rádios não eram uma coisa que existisse em todo o lado.

Os meus pais tinham a instrução primária, a minha mãe viera para Lisboa trabalhar como empregada aos 11 anos, e o meu pai tinha feito a tropa em Angola.

Em Portugal não havia perspectivas de vida, e o casal emigrou para a Alemanha, para conseguir ter uma existência melhor e constituir família. É claro que nunca tinham falado alemão, nem nenhuma outra língua além do português, mas não se atrapalharam.

A minha mãe aprendeu rapidamente e ao fim de algum tempo já se confundia com os alemães, o meu pai concentrou-se no essencial e usou a sua mítica capacidade para comunicar com qualquer ser humano, de qualquer nacionalidade, sem que ninguém saiba bem como.

As aventuras sucediam-se. Um dia, entrou numa bomba de gasolina e disse: “Queria gasolina para o meu avião!”. A senhora ficou a olhar para ele. Em alemão, afirmara desejar combustível para o “Flugzeug”, avião, quando na realidade pretendia abastecer o “Feuerzeug”, isqueiro.

Ainda insistiu, até que finalmente se entenderam. Era uma confusão perfeitamente normal. Noutra ocasião, também entrou numa mercearia e pediu que lhe vendessem seis horas, se faz favor. “Sechs uhr, bitte!!”. A surpresa de quem o atendeu não foi menor.

Algum tempo depois a empregada percebeu que o que ele ia ali procurar eram, na verdade, “Sechs eier”, seis ovos. Outro equívoco que acontece a qualquer um, já que, neste caso como no anterior, a pronúncia era parecida.

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Uns pares de décadas depois, pareço ter herdado estas capacidades de comunicação prodigiosas da minha família. Numa viagem a Espanha, há uns bons anos, a senhora do Mac Donald’s perguntou-me se o meu Happy Meal era de “Niña” ou “Niño”. Sem que se perceba porquê, achei que me estava a perguntar qual era a bebida que queria. Respondi: “Viño!!”.

Numa confeitaria, aconteceu-me algo parecido. A empregada perguntou-me se eu queria um cone com nata ou chocolate. Uma pergunta que, em espanhol ou português, é praticamente igual e soa basicamente ao mesmo.

Influenciados pela gula, os meus dotes linguísticos baralharam-se. Respondi-lhe que queria o “cono con nata o chocolate”, o que, na minha mente confundida e carente de açúcar, queria dizer “nata e chocolate”, tudo junto.

Demorou um bocadinho até que atingíssemos um entendimento, já que eu achava que ela estava a ser estúpida, por não me perceber… Anos depois, os dotes linguísticos do meu pai (extremamente pragmático) e da minha mãe (mais intelectual) não se perderam, e passaram para a geração seguinte!

Consoada vegan entre carnívoros

Apenas saio de casa às cinco, concluindo que a minha família felina é mais importante que as celebrações natalícias, e dando-lhes uma hora de mimos dedicados para compensá-los por uma ausência de umas quantas horas.

Chego ao local das festividades familiares e ouço comentários como “já estava preocupado, pensava que não vinhas! Estava a a ver que tínhamos que começar sem ti”.

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Sento-me, escondido entre o meu pai e um sofá, e a sensação é um pouco estranha. Sei o que vou comer, e sei que nesta casa vou sempre sair de barriga demasiado cheia, em quaisquer circunstâncias.

Mas é a primeira vez que me vejo perante estas tradições anuais (MUITO adaptadas) nesta postura. Este ano, e nos próximos séculos, há uma quantidade apreciável de coisas de que não vou querer saber. Os camarões, a sapateira, os mexilhões, a manteiga no pão, a linguíça assada, as filhós, os sonhos e outras tantas personagens principais deste elenco.

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À minha espera está uma deliciosa e substancial sopa de feijão e couve, bem quente, que, por si só, seria suficiente para abrir e fechar as hostilidades.

Depois há pão alentejano e vários tipos de tostas irresistíveis com manteiga totalmente vegetal, marmelada e doce, que me entretêm durante umas horas. E também pupias, uns belos biscoitos tradicionais, redondos e feitos apenas com azeite, farinha e fermento.

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Há grandes quantidades de amêndoas torradas, amendoins torrados, nozes e sementes de abóbora. Quando chegam os bolinhos de alfarroba já não há estômago que aguente, vão ter que ficar para outra altura.

A salada de frutas, sem açúcar e composta por mais de meia dúzia de frutas, incluindo manga, banana, romã, mirtilos, papaia, laranja e daí por diante, também já só vai ser ligeiramente provada, mas daí a algumas horas ainda há-de estar mais saborosa. “Nem sequer queres bolo-rei?! Que exagero!”.

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No dia seguinte há mais. Ao almoço esparguete com feijão, couve, cenoura e tomate, salada de frutas e frutos secos. A fartura é tanta que nem consigo jantar.

Para que alguém faça alguma coisa

A rapariga é apanhada desprevenida mas esboça imediatamente um largo sorriso, mostrando os seus dentes brilhantes e os olhos escuros e acolhedores.

Olá! Como está? Como se chama? Já ouviu falar em nós?”. “Sim, claro. Ouço as notícias todos os dias na rádio, e penso na guerra da Síria, nos refugiados, nas mulheres, nas crianças… Ninguém faz nada por eles, e ninguém tenta fazer, a não ser vocês, as Organizações Não Governamentais (ONG). E com muitas dificuldades”.

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Pois é. Deixe-me mostrar-lhe as várias formas de ajudar a UNICEF, e os valores de cada um dos donativos. Sabe quanto custa vacinar uma criança contra a poliomelite?”. “Sei lá… Um euro?”. “Foi a pessoa que se aproximou mais do valor real. Trabalha em saúde?”. “Não, mas penso muito nestas questões”.

Enquanto me pergunta se moro na Quinta do Conde ou em Alcântara, onde acha que já me viu, a rapariga, que se chama Joana Ribeiro, revela-me a resposta à pergunta.

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43 cêntimos. Acha que podia pagar uma vacina contra a poliomelite por dia? Agora, só temos um problema. Mesmo que eu morasse perto de si, não me dava muito jeito ir buscar as 43 moedinhas a sua casa todos os dias”, diz, e gesticula expressivamente.

Vou preenchendo o impresso com os dados, e recebendo a chamada de confirmação dos mesmos, do call center da UNICEF. Observo os sorrisos e a simpatia das voluntárias e voluntários competentes e profissionais da organização, apesar do frio que atinge o centro da cidade naquele dia.

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Continuo a pensar nas crianças, nas mulheres e nos velhos da Síria, assassinados em massa por Assad e Putin sem defesa nem preocupação por parte do mundo.

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Ninguém fez nada por eles. Ninguém quis saber deles. A não ser algumas ONG, que tentaram salvar algumas dessas pessoas, mas com grandes dificuldades e poucos resultados, porque não as deixaram. Fico a torcer para que esta rapariga e os seus colegas consigam muitos apoiantes. Para que alguém tente fazer alguma coisa.

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Os amigos que chegam na noite fria

O percurso habitual tinha duplicado e estava repleto de paragens desconhecidas. Os voluntários, ataviados com adereços de Pai Natal e chocolates também a ele alusivos, além da comida regulamentar, decidiram sair da Comunidade Vida e Paz mais cedo, o que não aconteceu, porque, antes de irem apoiar as Pessoas Sem Abrigo de Lisboa, um dos elementos da equipa estava a tentar salvar um gatinho vítima de um acidente.

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Nove seres saem da sede já com algum atraso, em busca de pontos de passagem enquadrados por pouca informação. No primeiro, há um homem angolano que diz viver sozinho num ermo debaixo de uma estrutura rodoviária, mas está rodeado de dezenas de objectos e sacos que parecem dizer exactamente o contrário.

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Na meia hora seguinte, meia dúzia de novos pontos vão sendo encontrados, com o telemóvel de um, os conhecimentos de outro, a experiência dos restantes.

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No local mais concorrido por pessoas carenciadas e instituições que as ajudam, as obras são tantas e tão caóticas que é quase impossível entrar.

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A carrinha fica a alguma distância, é vista ao longe pelos que a procuram com os olhos. Entre uma sandes, um bolo e um iogurte, põe-se a conversa em dia com os amigos que já se conhecem e apoiam há anos. É Natal. A mulher com ar de nossa tia, que diz sempre mal de tudo e de todos, está hoje em absoluta paz e amor com o mundo.

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Também por causa das obras, o casal que arruma carros do outro lado da avenida não tem trabalho e não está presente. E alguém até tinha trazido umas roupinhas para ela.

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Numa rua lateral, o homem que já sobreviveu a todos os acidentes imagináveis mostra ar surpreendido. Respondem-lhe: “Pois é, a carrinha chegou muito mais tarde… Novo percurso, a localização dos pontos ainda não está muito clara”. “Sim, sim, eu sei… As equipas dos outros dias tiveram o mesmo problema”.

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Pela primeira vez em anos e anos e anos, porque é Natal e de atrasada a Volta não passa, a equipa abre uma excepção e decide fazer um jantarinho abreviado no Burger King.

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O elemento vegan do grupo come batatas e bebe cerveja enquanto discute mais ou menos civilizadamente, explicando que os cheesy bites têm queijo, e tudo o que é feito com queijo, leite, iogurte ou manteiga implica a violação do animal macho e do animal fêmea, que passa toda a vida em gravidez permanente para dar leite e vê os seus bebés imediatamente retirados e assassinados na hora, ao longo de toda a sua existência.

O profeta da calçada dorme profundamente, hoje não partilha com a equipa as suas fascinantes aulas de filosofia, religião, política, geografia, história e estratégia militar pacifista, já que a carrinha chega com mais de uma hora de atraso.

Sem a loucura, a boa disposição, a animação, os remoques pontuais ou ocasionais alfinetadas entre os nove voluntários-amigos-companheiros-camaradas levar uma palavra de esperança e um caminho de mudança às Pessoas Sem Abrigo nunca poderia acontecer.

Conversa civilizada entre um vegan e um carnívoro

“Sabes o que é que eu acho disso tudo, não achas? Que é tudo uma grande parvoíce!!”.

“Sim, claro que sei.”.

“Olha, por exemplo, o que é que acontecia aos porcos, às vacas e às galinhas se de repente toda a gente deixasse de comer carne?”.

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“Então, deixava-se que vivessem tranquilamente até ao fim da sua vida, e parava-se de produzir, escravizar, torturar e massacrar esses animais simplesmente para dar prazer aos humanos.”.

“Mas ninguém ia querer cuidar deles! Porque não continuar a comê-los?”.

“É como te digo. A minha única razão para não comer carne nem quaisquer produtos de origem animal é o sofrimento e a tortura. Esses animais são torturados, abusados, violados e massacrados durante todos os dias da sua existência, apenas para que os humanos possam sentir o desnecessário e prescindível prazer da carne.”.

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“Mas olha que, há 80 anos, no campo, os animais que nós usávamos na agricultura também eram torturados a vida toda, e não era pouco!”.

“Há graus e graus de tortura. Não compares a vossa agricultura de sobrevivência de há 80 anos com o monstro da indústria agro-pecuária mundial de hoje. Além disso, eram outros tempos!”.

“Olha, é como ser contra as touradas! É a mesma coisa!”.

“Pois é, é a mesma coisa. E tu bem sabes que eu sou contra as touradas desde que existo, apesar de só ter começado a fazer uma alimentação vegan há uns dois meses…”.

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Gatos que saltam para o colo

Há aqueles gatos que não gostam que lhes peguem ao colo. Como a Matilde. Mas, com o passar dos anos, hei-de persuadir a minha princesinha. Já consigo levantá-la um bocadinho, sem ela protestar, dou-lhe uns beijinhos e devolvo-o ao chão, enquanto mia amorosamente para mim, pedindo-me mais festas.

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Ou o Jeremias. No caso dele bastam mais alguns meses, porque já é quase possível. O Chiquinho, se estivermos para aí virados (eu estou sempre), consigo andar com ele a passear pela casa, espreitar pelas janelas, ir ao quarto, à cozinha, sempre com ele ao colo.

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E depois há a Amélia. Melhor dizendo, a “Gááta!!”, o nome que ela própria escolheu usar. A Gáta é a razão de ser destas linhas, e o motivo pelo qual elas custam a desenhar-se no teclado…

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A minha esguia pantera negra não apenas me pede colo de cinco em cinco minutos. Não se limita a amarinhar por mim acima, em busca dos meus ombros para se instalar, e dos fechos e cordões dos casacos para puxar com as suas mãozinhas e morder, feliz e satisfeita, ronronando. “Crrrrrrr, crrrrrr, crrrrr, crrrr”.

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Se eu estiver, como há pouco, a matar tempo para fazer um telefonema à hora certa, ela vem parar aos meus braços, nem sei como, e adormecemos ambos por momentos a olhar um para o outro.

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Quando chega a hora, aviso-a, convenço-a suavemente e vou colocá-la num lugar confortável e quentinho, enquanto pego no telefone. Do outro lado, não atendem.

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Mexo no telemóvel, no PC, no bloco de notas… Sem dar por isso, já está outra vez colada a mim. Acaba por aninhar-se sobre as minhas pernas, enquanto vou picando as teclas com as pontas dos dedos.

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Para alguém que começou a ser seduzido há meia dúzia de anos por estes espíritos meigos de quatro patas, há duas grandes verdades na vida. Primeira, os gatos são seres absolutamente maravilhosos. Segunda, não há dois felinos iguais.

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O Dostoievsky foi adoptado!

O fado de Dostoievsky e o rumo da minha vida estavam ligados, entre si, há muito, muito tempo. Naquela época, algures na Primavera de 2016, eu trabalhava na empresa que me deu bom pão e melhor mesa por mais de uma década.

Dostoievsky, a quem, de início, não se sabia nome, apareceu por ali um dia, certamente abandonado por quem não lhe conhecia ou percebia as qualidades… Do ser doce, meigo e emotivo que Dostoievsky sempre fora.

Mas alguns trabalhadores da empresa, homens de barba rija e coração mole, deram-lhe o carinho, a boa comida e o abrigo confortável que ele procurava.

Depois, esses homens sensíveis e dedicados do armazém e da manutenção falaram comigo. Na mesma altura em que saí da empresa, começava a nossa missão de procurar um lar para o Dostoievsky, que, na altura, esteve quase para chamar-se Malhadinho – já que, de facto, ele é malhadinho.

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Nesses dias conheci a Fátima e a Débora, dois anjos da Rafeiros SOS, e esse foi o ponto de passagem seguinte, e de baptismo, para o Dostoievsky. Mas como este menino já tinha uns dois ou três anos, e não tinha alguma característica física que o fizesse destacar-se muito no meio de diversos gatos, era difícil…

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A Fátima lembrou-se de colocá-lo aos cuidados do Café Aqui Há Gato, o café simpático e acolhedor que foi responsável pela adopção de muitos e muitos lindos seres felinos sem lar nem família. No Aqui Há Gato, o Dostoievsky foi sintetizado em Dosty, porque Dostoievsky era longo e complicado de dizer.

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Este fim-de-semana, chegou a única prenda de Natal que eu queria, e aquela que mais desejava. O Dostoievsky foi adoptado! Infelizmente, no mesmo dia soube-se também que o Café Aqui Há Gato fechou as portas, na mesma data em que conseguiu várias adopções de gatinhos meigos e carinhosos. Um até sempre agradecido, Café Aqui Há Gato!

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Um sorriso, um abraço, uma dança, uma mão no ombro

O senhor Dias é um caçador gentil e implacável e eu não percebo nada do jogo das Damas. Na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz para as Pessoas Sem Abrigo, no Espaço Ser e Estar, este homem com dentes a menos, falas contidas mas humoradas e sotaque africano dá-me uma tareia neste jogo como nunca tinha levado na vida.

 

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(Foto António Santos/ Comunidade Vida e Paz)

 

Vai-me lembrando: “Tem que ter sempre fome!”, a sua maneira de dizer que sou obrigado a comer uma peça… Para ele em seguida me subtrair três num só movimento, fazer dama e ganhar.

Isto acontece sucessivamente, um jogo após outro, até o senhor Dias ter pena de mim e ir dar um giro pela festa. A seguir eu e a minha amiga somos cilindrados alternativamente pelo senhor António, que nos explica como se joga às Damas.

Aprendemos as técnicas básicas de defesa e ataque mas não temos qualquer hipótese: Os mestres são eles, nós somos caloiros imberbes.

 

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(Foto – Lara Raquel Silva)

 

Na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, as Pessoas Sem Abrigo têm, durante três dias, refeições, roupa, dentista, serviços jurídicos, burocráticos, médicos, segurança social, emissão de cartão do cidadão, barbeiro, duche, missa, espectáculos de dança, música e teatro para eles.

Têm uma celebração de amor e carinho que existe por eles. E têm uma representação extremamente forte do Espaço Aberto ao Diálogo: O serviço da Comunidade Vida e Paz que começa por resolver os problemas do dia-a-dia das Pessoas Sem Abrigo para, depois, as levar ao caminho da reinserção na sociedade, através das Quintas e comunidades de reinserção da Comunidade Vida e Paz.

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Os voluntário estão na festa para pô-la de pé e receber os seus convidados. Animá-los, alegrá-los, brincar, conversar, sorrir, rir e dançar com eles. Atender às suas necessidades mais pequenas ou mais dramáticas.

Depois de estar na conversa e na jogatina com o senhor Dias e o senhor António, as pernas dirigem-se ao recinto principal da festa e procuram pessoas sozinhas, desamparadas, aborrecidas ou desanimadas, para levar-lhes um sorriso, dois dedos de conversa, um abraço, uma mão no ombro.

Há um homem idoso e frágil que quer coçar-se na cintura por baixo das calças e não consegue. Ponho-o de pé, tento ajudá-lo e coçá-lo, sem sucesso. Deixo-o com algumas palavras de simpatia, depois de ele desistir, e digo-lhe que “qualquer coisa, é só chamar-nos”.

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Levo duas horas a voltar a encontrar, no meio da confusão, a mulher que me pediu um copo de água com açúcar. Persisto, mais três voltas às duas salas de jantar e dou com ela.

O melhor está para vir. O turno dos Motivadores acabou, vou juntar-me às tropas da Animação, esse grupo que sorri a toda a gente e a todas as pessoas abraça entre dois desafios para dançar a música que está a tocar na hora, seja qual for.

Homens e mulheres dos 5 aos 70 anos transfiguram-se ao som da banda que toca os êxitos internacionais mais conhecidos. Tornam-se os reis da brilhantina, os ases do rock and roll e as estrelas cintilantes do Kizomba.

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As voluntárias andam também entre os 16 e os 60 e tal anos. São elas os anjos que fazem brilhar os olhos destes rapazes e homens, oferecendo-lhes o verdadeiro baile a que só têm direito aqui.

Homens de 70 anos pedem números de telefone, dançarinos exímios não largam as voluntárias simpáticas e alegres, um rapaz de 20 e tal diz que ainda vai dançar com mais duas delas antes de se ir embora.

É a magia da Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz para as Pessoas Sem Abrigo.

Jeremias na brasa?

Há um ano e tal, o meu Jeremias começou a aparecer com o pêlo chamuscado. Cá em casa não há lareiras, fogueiras, barbecues ou brasas e não é hábito haver equipamentos de aquecimento ligados.

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Não se percebia como raio teria o meu pequeno lince, o meu lindo gato-cão, arranjado maneira de queimar o belo casaco que a Natureza lhe deu.

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Comecei a observá-lo. O irmão da Matilde, congénere da Amélinha (aliás, a “Gáata!!”, único nome que reconhece) e do Chiquinho tinha alguns locais de permanência favoritos. Um dos principais: A box da televisão, que adora e onde passa grandes temporadas, quando estou a ler na sala ou a ver séries.

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Como o aparelho aquece, e ainda mais quente fica com ele em cima, concluí que seria essa a causa. A box passou a estar sempre com um pano, ou mesmo dois, por cima.

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Pode não ser muito bom para ela, mas Jeremias, o gato que gosta de se deitar directamente em cima da pele das pessoas, mesmo nas situações mais embaraçosas, fica protegido. Com a box tapada, não me preocupei mais.

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Durante algumas décadas da minha vida, não tomava banho de água quente nunca, apenas porque não. Quando fui casado, readquiri alguns hábitos e confortos da civilização, como esse.

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Este Inverno, depois de me deliciar com mais algumas efusões do precioso líquido escaldante sobre a minha carne, reencontrei um motivo de preocupação. Percebi que o meu pequeno felino doido e atrevido estava outra vez com algumas pontas queimadas.

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Porquê? Como era possível? Voltei a registar e analisar mentalmente os comportamentos dele. Lembrei-me que este menino gosta muito de se encostar à caldeira no Inverno.

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Já tinha verificado a temperatura dela, e não me parecia suficiente para causar tal efeito. Desta vez decidi abrir uma torneira de água quente durante algum tempo, deixá-la assim e ver, nesse momento específico, o grau de aquecimento da caldeira. Queimei a mão e percebi. Afinal era aqui que estava a causa da mudança de visual do Jeri…

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Demasiado aburguesado para voltar a tomar banho de água fria todos os dias do ano, optei pela solução mais prática.

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Agora, na hora do duche, o Jeremias é instado a deixar a cozinha por uns tempos, e só regressa a essa secção dos seus domínios após o dito aparelho ter arrefecido convenientemente.

Adeus, Tozé. Oh captain, my captain

O Tozé ficou a olhar para mim embasbacado. “Você não se trata nada mal!”. A minha mãe tinha-me feito umas sandes nuns pães gigantes, com refeições monumentais dentro, para levar numa visita de estudo a Peniche, onde todos nós comemos que nem abades e bebemos que nem alarves.

O Tozé era o nosso stôr de Filosofia do 12º ano, um dos grandes responsáveis pela minha paixão por esta disciplina, a mãe de todas as ciências, aquela que estuda o saber e questiona a realidade.

Nas aulas do Tozé aprendíamos a Filosofia histórica e formal, a Filosofia espontânea e a Filosofia da vida. O nosso stôr contava-nos as histórias dos sítios difíceis e complicados onde tinha dado aulas, e de como, com a sua descontracção e o seu metro e oitenta e tal, tinha passado incólume por essas experiências de filme. “Os tipos punham as navalhas e o haxixe em cima da carteira, ali à minha frente, só para me provocar”.

Relatava outros episódios a que tinha assistido, de gente que andava à pancada, jorrava sangue por vários sítios e lavava a cara nesse líquido que contém a vida. Pelo meio, ensinava-nos todas as teorias de Hegel, Kant e Kierkegaard.

Mesmo no meu caso, que amava a disciplina e até quis candidatar-me a esse curso, é escusado perguntar qual a parte da aula de que gostava mais…

Um belo dia, já não sei bem porquê, eu e os matulões que me protegiam e a quem eu ajudava nos estudos demos por nós juntos com o Tozé, algures no Barreiro, sem aulas nem obrigações. “Bora beber uma ginginha ao Manel da Galega?”, atira o nosso líder espiritual.

Seguimos o nosso guru, evidentemente. Foi a primeira e mais deliciosa ginginha que saboreei em toda a minha vida.

O companheiro número um de todas as aventuras daquela época saudosa almoçou comigo na semana passada. “Olha, tenho uma notícia triste. O Tozé morreu”.

Naqueles dias mágicos e goriosos, chamávamos ao Tozé “Oh captain, my captain”, porque para nós ele era como o Professor Keating (Robin Williams) do Clube dos Poetas Mortos, realizado em 1989 por Peter Weir. Era a aventura, o sonho, a ousadia e a orientação espiritual. Adeus. Oh Captain my Captain.