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“Esses ilegais usam os nossos hospitais e as nossas escolas!”

O homem, um quarentão de óculos, entradas no cabelo castanho e barriga ligeiramente proeminente, muda de ideias e acaba por se sentar, afinal, no banco do lado. Um papel azul sobre os estofos escuros diz “reservado”. A colega, ou amiga, ia para escolher um dos lugares errados, mas ele alerta-a a tempo. “Então, não vês que esses estão reservados?!”.

Os dois riem-se, olhando para os pequenos papéis azuis e rectangulares espalhados pela carruagem. Mas depois pegam nos restritivos avisos e abrem-nos. Algum tempo depois, começam a perceber.

Os passageiros foram apanhados de surpresa pela campanha contra o tráfico de seres humanos, mas a verdade é que em Portugal há, pelo menos, 1400 vítimas desta actividade. Estas pessoas são alvo de exploração sexual, laboral, extracção de órgãos e escravidão e são usadas para mendicidade e actividades criminosas.

Pensando na Europa em geral, três quartos dos imigrantes e refugiados que conseguem sobreviver e entrar neste Velho Continente são intensamente explorados até fazê-lo. Ser raptado, permanecer em cativeiro e ser obrigado a trabalhar como escravo é o que enfrentam.

Viagens pagas com os seus órgãos ou com doações forçadas de sangue são uma situação recorrente, de acordo com a Organização das Nações Unidas e um artigo de Outubro de 2016 do jornal Público. É por tudo isso que passam até conseguirem entrar nesta bolha dourada em que vivemos.

Um português candidato, nas eleições norte-americanas de Novembro de 2016, a um cargo administrativo, oferecia aos repórteres da TSF durante a campanha as seguintes declarações: “Aqui no nosso Estado, há milhares de ILEGAIS que entram todos os anos! Esses ILEGAIS usam os  nossos hospitais, as nossas escolas, os nossos serviços de saúde, os nossos serviços públicos! É preciso fazer alguma coisa!”, vociferava este votante declarado e assumido de Trump. Quem estivesse ligeiramente desatento nem perceberia que este imigrante transformado em político estava a referir-se, na realidade, a pessoas. A seres humanos.

Em Inglaterra, por alturas do referendo do Brexit, pululavam pérolas do mesmo calibre. Nas redes sociais, pessoas que estavam no Reino Unido havia um ou dois anos, imigrantes, diziam ser contra a imigração e a favor da saída da Grã Bretanha da União Europeia. Queixavam-se de que o território britânico, o seu país, portanto, estava cheio de imigrantes…

Quando as pessoas, em poucos minutos, se esquecem de que são pessoas, de que os outros são pessoas… Quando não têm noção e memória do que são e do que foram (imigrantes, por exemplo)… Quando já não se lembram que somos todos iguais, todos seres humanos, todos elementos da mesma espécie, que todos nascemos, vivemos, morremos, respiramos, comemos, amamos, choramos e temos as mesmas necessidades, carências e fragilidades… Quando se deixa de ter consciência disso, então, tudo passa a ser possível.

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