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Ela é o meu Mar

Tinha 11 anos, estava-se em 1959, vivia nos confins do Alentejo pobre e profundo do Portugal salazarista e tinha sete irmãos que, devido às dificuldades económicas, comiam quase sempre o mesmo. Com esses 11 anos decidiu ir para Lisboa, servir em casa das famílias que tinham criadas, para melhorar a vida dela e dos irmãos.

Alguns anos depois, conheceu um jovem bonito, simpático e aventureiro, que combatera na guerra. Apaixonou-se por ele. Acabaram por casar-se e emigrar para a Alemanha. Esta coisa de virar costas a uma vida sem perspectivas não é de agora, os portugueses já o fazem há muitas décadas.

Aos 20 anos, depois de algumas tentativas, nasceu a minha irmã, a Sílvia. Dois anos e meio depois, fui eu que apareci cá deste lado. A minha mãe sempre me disse, durante estes 45 anos, que quis ter filhos o mais nova possível. Queria acompanhá-los, vê-los crescer, compreendê-los, estar perto deles, apoiá-los.

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Foi exactamente isso que aconteceu, e ainda sucede. É impossível esquecer uma noite em que, eu e a Sílvia ainda jovens e há pouco saídos da adolescência, demos com os meus pais numa discoteca, com o seu melhor amigo de toda a vida, e todos já com um grãozito na asa.

Essa noite acabou da seguinte forma: Eu, feliz da vida, porque, pela primeira vez na minha existência, também degustei um copito e não me soube nada mal. A Sílvia, nada contente, porque era a única dos quatro que não tinha ingerido uma gota de álcool. O carro – um comprido e pesado Morris Marina branco, de ferro puro – em mau estado, porque se avariou e o meu pai calculou mal a força das pernas e a distância entre a estrada e um muro, enquanto o empurrava para o fazer pegar.

A minha mãe, desde o início da noite, só dizia: “Ca-a-lma, ca-a-lma!”. Depois de termos tentado arranjar um reboque, uma casa de onde telefonar (embora estivéssemos a 500 metros da nossa) e andado perdidos uns dos outros durante uma meia hora (porquê, não sei), tudo se concluiu… O meu pai foi dormir as duas ou três horas que lhe restavam antes de ir pegar no camião e empreender o seu combate diário pelo sustento de todos nós. Eu, a minha mãe e a Sílvia ficámos a fumar cigarros suaves e femininos (marca Peter Stuyvesant – claro que a minha mãe há muito que estava careca de saber que fumávamos, e achava que de nada servia proibi-lo), a conversar e a beber cházinho até às cinco da manhã.

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Quantas pessoas poderão relatar tal episódio rocambolesco, envolvendo os pais e a irmã? Mas com a minha mãe sempre foi assim, sem tabus. Acredita na responsabilização, como arma mais eficaz que a proibição.

Esteve, e está, presente em todas as horas, para falar do que nós quisermos, desejarmos, ou precisarmos. Desde pequenos. Droga, sexo, vida, morte, eutanásia, aborto ou o mais polémico tema de que nos possamos lembrar. Sempre foram assuntos bem vindos lá em casa. Esses ou outros quaisquer.

Da mesma forma, a minha mãe fez vários sacrifícios muito grandes na sua vida, pelos filhos e pela família. Por exemplo, abdicou de ter uma carreira (é uma auto-didacta, os conhecimentos e a cultura que tem estão a anos-luz das suas habilitações formais). Mas prescindiu de trabalhar fora de casa (embora tivesse sempre por lá um bebé de quem tomava conta, substituído por outro quando crescia e ia para a creche)… Renunciou a uma profissão formal, para poder estar sempre perto dos filhos, para os ouvir, apoiar e aconselhar em todos os dias da sua existência. Abdicou de tudo aquilo que estava ao seu alcance ou que podia ter, pelo bem estar espiritual e tranquilidade dos filhos.

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Até hoje, houve apenas uma coisa que exigiu para si. O Mar. Ama-o absolutamente, e faz questão de visitá-lo regularmente, no Outono e no Inverno, porque não gosta de confusões e barulheiras. E quanto mais agitado, bonito, revolto e vistoso, melhor. É assim que ele a acalma. A minha mãe faz anos dia 1. Está mais que visto: Vamos visitar, tranquila e prolongadamente, o seu amado Mar.

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  1. Este cronista sem abrigo pode contar com alguém que ira ler sempre as suas crónicas. Esta foi a primeira e já me conquistou. Continue.