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Ela despede-se de mim e garante que algo vai acontecer

Percebo, pelo sotaque, que não é portuguesa. Está de pé ao meu lado, alta, cabelo comprido, escuro, encaracolado, vestido de Verão, casaco de malha leve e fino por cima. É faladora e sociável. Começamos por nos queixar da burocracia, d’O Sistema Kafkiano que não faz sentido.

Conto-lhe porque estou ali, mais uma vez, àquelas horas. Acaba por relatar-me algumas das suas experiências burocráticas em Portugal, diz-me que reclamou, exigiu, protestou. Às seis, ela é o número 11, eu o número 12.

Em vez de ouvi-la, sou eu a explicar-lhe qual é a nova peripécia que me traz outra vez a estas filas de espera. Convida-me para o café e o pequeno-almoço, que se concretizam um minuto depois, quando a pastelaria abre.

Conversamos sobre voluntariado, catolicismo, cristianismo ortodoxo, literatura. Esta figura feminina, que parece não ser totalmente real, prende-me o olhar. É uma cidadão do Mundo, mas, puxando por ela, consigo que me revele a sua nacionalidade romena. Há muitos anos que já se sente portuguesa.

O seu primeiro e último amor é Dostoievski, mas não pode esconder a sua paixão por Tolstoi, Gogol e Mircea Elíade, ou a sua curiosidade relativamente a Alexandre Fadéiev.

Falamos e falamos e falamos. É uma intelectual que adora as tecnologias, e quando a bateria do smartphone de última geração se descarrega fica triste. Usa o meu chaçomóvel para que eu lhe mande um pedido de amizade.

Continuo a falar sobre mim. Voluntário de duas associações, jornalista desempregado, alvo de uma reestruturação, 45 anos de idade, 30 a trabalhar, desde os tempos como servente das obras às mais de duas décadas e meia de jornalismo.

Dinâmica, activa, enérgica, consegue carregar o telemóvel sofisticado, dar-me sugestões de meia dúzia de livros para ler e de uma dezena de sites, páginas, grupos, anúncios e oportunidades de trabalho às quais eu tenho que concorrer. Acha que as pessoas devem ajudar-se umas às outras, e está firmemente determinada a fazê-lo por mim.

Às dez e meia, chega a minha vez, depois de ela ter sido atendida. Com os olhos brilhantes a brincar em modo dançarino, garante-me que vamos estar em contacto, que vai ajudar-me, que conhece muita gente e que algo tem que acontecer.

Despeço-me deste ser humano que marcou quatro horas da minha vida, dirijo-me ao balcão e sou atendido.

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