O contador fantasma

29 277, leio no contador. Anoto o valor e dirijo-me à companhia das águas, a dez minutos, para alterar a titularidade do contrato para o meu nome, com os impressos e documentos necessários.

Uma mulher vende pequenas camisolas de bebé, de malha, num banco de jardim, enquanto preencho os formulários – excepto as partes que não percebo.

Entro na companhia, entrego os impressos e a caderneta predial.

Chegamos à parte da leitura do contador. “Não, isto não é possivel. Não é possível que alguém tenha gasto 900 metros cúbicos de água em dez dias, nem com uma inundação. Não é possível. Não lhe posso aceitar isto assim”.

 Bom, eu posso voltar lá e tentar ver o que fiz mal… Dez minutos.

Tudo bem, eu espero por si, depois não precisa de tirar senha”.

Fico a olhar para o armário do contador. Anotei bem, ainda não estou completamente louco. Continuo a olhar. Um contador ao lado de outro. Um de um andar, um de outro… Mas também há um armário com dois contadores, em baixo. Um de um andar, um de outro.

Olho com cuidado e atenção. Os contadores de cima são os da luz. Os de baixo os da água. A leitura é 203 675. Confirmo várias vezes. Regresso.

Verifica-me tudo, fotocopia a caderneta predial, o cartão do cidadão caducado. Estou mesmo a ver que, no fim de guardar as cópias e me dar os originais todos, o diligente e amável funcionário ainda vai acabar por esquecer-se de me pedir a leitura.

Por mera maldade, espero e não digo nada, a ver se ele se descose. Ao fim de um ou dois minutos, depois de registar e oficializar o processo, pergunta-me: “Então, nesse caso, qual é a leitura”?

No meio de tudo, apenas repus os níveis de açúcar gastos na corrida das seis da manhã com uns escassos Dokyos achocolatados, de pacote. Nem uma mísera Bolinha de Berlim, nem sequer um Palmier…

“Diga-me, passou na inspecção?!” “Ah, passam sempre!!”

Meia hora antes da inspecção, ligo para a EDP. A chamada é paga e demorada. “Não, não tem nenhuma inspecção marcada!”. “Han?! Tenho aqui o mail que o comprova!!”. “Então mande-me o mail.”.

Ligo os dados, mando o mail e pago, porque já tinha gasto o limite mensal. Volto a telefonar e a pagar. “Hm?! Quem é que lhe disse isso? A sua inspecção está marcada para as 11H00, está tudo certo. O Engº Pedro já deve estar aí, ou quase a chegar!”.

Respiro e espero. Às 11H10, chega o Engº Pedro. O Engº Pedro deve ser um cinquentão cinzentão de sapatos pretos de couro, fato cinzento e gravata da mesma cor, a queixar-se do calor sufocante e a exigir papelada atrás de papelada…

O Engº Pedro entra. É um rapaz de menos de 30 anos, calções brancos quadriculados, T-Shirt colorida, óculos escuros alaranjados, cabelo rapado, tablet, smart-phone e mochila, bem disposto e descontraído.

Desconfiado, não me deixo levar pelas primeiras impressões, de pé atrás até ao fim. Fotografa a caderneta predial e o registo da conservatória, acha que não faz sentido nenhum eu dar-lhe aquilo, ele digitalizar e enviar para o serviço respectivo.

A planta, o plano do aquecimento, dos caixilhos, a licença de construção, tudo referido no mail de confirmação da inspecção… É como se nunca tivesse ouvido falar nisso, felizmente. Quanto ao tubo que me parecia colocado num lugar meio estranho, a mesma coisa: Não existe. Trocamos animadas impressões sobre o calor, a paisagem, a vizinhança, o que fazer quando uma criança pula, salta, rebola, grita, canta e esperneia sem parar. Gargalhadas aqui e ali.

Com os seus sofisticados dispositivos electrónicos vai medindo, estudando, aferindo, fotografando, eficaz e rapidamente. Pouco mais de 15 minutos depois (o mail de confirmação referia uma a quatro horas), a inspecção energética está terminada e um autocolante a referir isso mesmo afixado. O Engº Pedro não me pede os 60 euros obrigatórios que a EDP referira ao telefone. Pergunto-lhe se está tudo bem, se não falta nada. Responde que sim, que já está. “Passou?! Chumbou?!”. “Ah, isso, passam todas!! É só uma questão de classificação!”.

Talvez um dia, daqui a muitos anos, a Humanidade chegue a esta conclusão: De facto, a nossa breve passagem por estas bizarras paragens é afinal um daqueles saudosos gelados tradicionais, em cone triplo, com três sabores. Chocolate negro do Equador; chocolate de Oreos originais de chocolate; no fundo, por baixo de tudo, obviamente, Nutella. E, vários centímetros acima, duas coberturas a coroar. De Brownies, naturalmente, e de bolacha americana – com pepitas de chocolate negro, como é evidente.

No palmier é mais difícil encontrar o chocolate

O moço sorridente como um desenho animado esclarece-me. Para conseguir o dispendioso certificado energético de que preciso, é necessária uma exorbitante inspecção energética. A inspecção exige que imprima uma caderneta predial.

Dias depois telefonam-me, fazem a marcação, enviam-me um mail. Às voltas com infindáveis burocracias da Segurança Social, não penso mais no assunto.

Num balcão da companhia das águas descubro que não é complicado nem custa dinheiro obter a tal caderneta predial.

Chego à conclusão que posso ter anotado mal a data da inspecção e volto a abrir o mail. Descubro que, além da caderneta predial, tenho que pedir à Conservatória do Registo Predial “a conservatória do registo predial da habitação”.

Após algumas voltas, encontro o edifício da Conservatória e peço uma senha. Tenho cinco pessoas à frente. Vou à pastelaria fazer tempo.

No regresso, vejo ao lado do edifício onde entrara um outro, muito parecido. Tinha entrado na conservatória do registo civil, em vez da conservatória do registo predial. Tiro nova senha. Tenho três pessoas à frente.

As funcionárias são simpáticas. Para o cartão de cidadão das crianças, e para as respectivas fotos tiradas na altura, já têm uns bonequinhos guardados para as encantarem e distraírem enquanto recolhem a cobiçada e involuntária imagem.

O rapaz do meu lado discute com o filho, porque joga no tablet dele, carrega onde não deve e deixa-lhe o mini-computador com as coisas todas desorganizadas. Parece ser essa a sua única preocupação: O seu puto deverá não o interromper, não o perturbar e deixar o tablet em boas condições após o seu uso, como se não lhe tivesse tocado.

A funcionária que irá atender-me mostra-se delicada, gentil e paciente com o velhinho com quem está a falar. Explica-lhe tudo. O papel de que precisa, aquele que não tem que levar, onde deve ir e o que tem que fazer.

Pergunta-me se preciso de uma cópia certificada (20 euros) ou não certificada (seis euros). Fico a olhar para ela. Consulto o mail com a confirmação da marcação da inspecção e a lista dos documentos solicitados. Só tenho que pagar seis euros.

Na verdade, a existência assemelha-se mais a um palmier recheado com chocolate, do que a uma Bola de Berlim com chocolate. O chocolate está profundamente escondido e misturado com a massa. A massa é adocicada, grossa e complexa. Nunca sabemos muito bem se já estamos finalmente no doce e compacto chocolate interior ou se ainda nos encontramos às voltas com a espessa e açucarada massa que o envolve.

“Ele não percebia como é que eu sabia que me enganava”

O porteiro do edifício de luxo, homem rechonchudo, alto e grisalho, mete conversa com a loira magra, que chegou de carro há momentos. Ela comenta que, onde há agora lugares de estacionamento pagos, antes era a estrada, e ainda se nota, pelo alcatrão. Ele ataca a existência de parquímetros, considera-os uma aberração legal. “Nós pagamos um Imposto Único Automóvel. Se é um imposto único, é um imposto único… Porque pagamos mais do que isso?”.

Continua a conversar animadamente, criticando a existência de estrangeiros em Portugal. E comenta que viveu vários anos no Brasil, na Venezuela e em Timor.

A loira queixa-se de que, quando o pai estava doente, transformado num vegetal imóvel e sem reacção, cobraram-lhe várias vezes o serviço de transporte em ambulância. E afirma que, quando teve que ser operada ao cotovelo e ficou em casa durante uma porção de meses, sem rendimentos e com dois filhos, a Segurança Social não lhe pagou um único cêntimo.

Chega uma segunda loira, bem volumosa. O porteiro em part-time, reformado, conversa muito alegremente com as duas. Afirma que ele e a sua mulher vivem há 13 anos em casas diferentes, e que está muito bem assim.

As loiras dizem cobras e lagartos dos seus antigos maridos. A magra: “A melhor coisa que fiz foi tirar a carta. Ele não percebia como é que eu sabia que ele estava a enganar-me… Pois, eu passava de carro, para baixo e para cima, e via que ele não estava na oficina”.

A loira que ocupa mais espaço: “Ele trabalhava fora, e era assim que me traía. Quando estava fora. Ainda tentou metê-la lá em casa, eu é que não fui nisso! Agora olho para tudo nos homens. Até a maneira como pensam! Podia estar com um, mas não quis. Aquilo via-se logo… Nem educação tinha”.

A magra: “Ele não me quis dar um tostão. Dizia que a minha filha já tinha 18 anos, já tinha namorado, já fazia tudo… Também já podia ir trabalhar! Isto é coisa que se diga a uma filha?!”.

O porteiro do edifício de luxo fala-lhes, muito insistentemente, do Chico Manivela, do Manuel Fisgas e de um homem que roubou um bigode… A polícia pensou que era ele, e veio atrás dele. Provavelmente por cortesia, ou porque o porteiro insistiu em fazer-lhes companhia durante várias horas, as loiras riem-se de vez em quando. A magra comenta: “E pensar que tudo isto começou por causa dos lugares de estacionamento!

Uma hora e meia depois, são rapidamente distribuídas as senhas do dia para a Segurança Social. Uma das loiras fica com o número 35.

As gatas não usam burqa

Será que às senhoritas muçulmanas é permitido fazer surf em fato de surf completo, ou terão de flutuar na prancha desnudadas, e, se uma rapariga calhar a ser detectada na tábua em fato de surf completo, exigir-se-á que retire, do interior do fato de surf, a sua identificação religiosa, podendo posteriormente manter o fato envergado, caso seja católica, protestante, testemunha de jeová, evangélica, mormon, ateia, agnóstica, budista ou hindu?

Coloquei esta questão às minhas gatas (a “Gáata!” e a Matilde), e aos meus gatos (o Chiquinho – o Felino Emigrante -, e o Jeremias, o Gato Sexual). Debatemos o assunto em conselho tribal felino e humano. Chegámos a várias conclusões.

Ver uma mulher tapada dos pés à cabeça numa capital europeia, cara e olhos atrás de um pano preto e opaco, não nos parece bem. Gostamos de ver o rosto e o olhar das gentis donzelas com quem falamos, sejam velhas, novas, gordas, magras, lindas de morrer ou com buço e bexigas. Achamos que o sorriso de uma mulher é umas das duas ou três coisas mais belas à face da Terra, deve ser preservado e divulgado: O que é bonito é para se ver.

Agora, se as mulheres daqueles países quentes onde toda a gente grita cada vez que se compra ou vende alguma coisa têm um gosto próprio… Se elas preferem ir à praia sem terem que mostrar obrigatoriamente os braços, as pernas, os rabos, o cabelo e metade do peito, não vemos que o mundo vá acabar por isso. Provavelmente, no caso de algumas delas é pena, e para outras talvez até seja boa ideia.

A “Gáata” e a Matilde tentaram pôr-se no lugar delas, com alguma dificuldade. Mesmo que elas tivessem o hábito de ir à praia, ou de se estenderem ao Sol na rua, seria diferente. As lindas pernas, rabos, maminhas e mamilos da “Gáata” e da Matilde estariam bem protegidas pelo fato natural com o qual elas nasceram e hão-de viver sempre.

As gatas não usam burqa.

Quando o monstro micro-ondas chegou a minha casa

Quando o monstro micro-ondas chegou a minha casa, talvez tivesse uns 14 anos. O meu pai era camionista, nos anos 1980. Carregava todo o tipo de coisas. Pedras, areia, vinho, bananas, bacalhau, tudo aquilo de que alguém pudesse lembrar-se.

Muitas vezes, acontecia uma carga estragar-se, perder-se parcialmente, ficar caída no meio da estrada. O meu pai nunca foi pessoa de deixar as coisas desperdiçar-se, fossem elas quais fossem.

De vez em quando apareciam bolachas de marcas e sabores estranhos e desconhecidos, cacau puro, um bacalhau a secar num canto da casa, um cacho de bananas verdes que amadureciam no domicílio, segundo técnicas horto-frutícolas ancestrais. Nesse dia foi diferente.

Naquela família, quem amava, acarinhava e venerava mais os livros era a minha mãe… O meu pai tinha consciência disso.

Naquela fria noite de Inverno, há mais de 30 anos, aconteceu um milagre literário. Do mesmo buraco negro donde surgiam os bacalhaus, as bananas, as bolachas e muitas coisas mais, apareceram livros. Mas não eram uns livros quaisquer.

Eram obras que, hoje, têm 70 anos de idade. São relíquias em si, materialmente, mas também pelo conteúdo. As Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano, estão ali ao lado, na estante dos livros antigos.

Havia, também, O Monstro Micro-Ondas, que veio mesmo a calhar para divertir e encantar dois adolescentes ávidos de aventura e novidade, e a sua mãe, que partilhava das mesmas necessidades. Algumas centenas de páginas de ficção fantástica, que não faço ideia onde se encontram hoje. Li-as, fascinado.

E havia… Anna Karenina, de Tolstoi! Numa edição de 1946. Que sorte nós tínhamos, em ter um pai tão diversificado e providenciador. Devorei a história dos amores e desamores da jovem e linda aristocrata russa, dividida entre os deveres conjugais que a sociedade rígida e conservadora da época e o casamento lhe impunham, e as paixões incontroláveis que lhe palpitavam permanentemente no coração.

Esta edição estava incompleta… Passaram uns anos até a minha mãe conseguir encontrar e oferecer-me um exemplar integral, para que pudesse continuar a viver aqueles dias intensos, poéticos e dramáticos, entre bailes de sociedade, beijos roubados de fugida e sofrimentos arrebatados.

A luz, que para a infortunada tinha iluminado o livro da sua vida com os seus tormentos, as suas traições e as suas dores, rasgando as trevas, brilhou num clarão mais vivo, vacilou e extinguiu-se para sempre”, lê-se, no final da sétima parte. Acabei por reviver esta frase ao longo da vida, em várias edições diferentes da obra. E é das frases mais belas que conheci em toda a minha existência.

“Ouvi dizer que chegaste a casa cheio de sangue”

Toq, toq, in a mina ills, toq toq!”. Tinha uns dez anos, e achava que estava mesmo a cantar em inglês, uma música que se chamaria Talk Talk, de uma banda do mesmo nome.

Quem estava a ouvir eram os miúdos do Bairro da Caixa, os mais temíveis de todos. Estávamos no 5º ano (aquele que se seguia à quarta classe, ou quarto ano), que fazíamos a uns bons quilómetros de casa. Íamos e vínhamos diariamente de autocarro, ficávamos lá o dia todo.

Acharam tanta piada que exigiram que continuasse e repetisse. Puto estúpido, mimado e teimoso, recusei-me… O resultado foi pior. Acabei obrigado a entoar o hino dentro de um contentor do lixo.

Mas foi só o princípio. A partir daí, aqueles pequenos marginais nunca mais me deixaram em paz. Não podia estar descansado. Nunca sabia quando iam aparecer para me aterrorizar, exigir o dinheiro do lanche, ameaçar e tudo o mais que lhes passasse pela cabeça.

Ou era o maluco que dizia que agarrava numa pedra e levava ossos e tudo à frente, ou eram os seus amigos que me arrastavam para trás da escola dizendo que me espetavam uma seringa nas veias… Nunca sabia quando é que iria apanhar com eles, nem o que ia acontecer a seguir.

Foi assim durante cinco anos. Nessa altura, conheci uma pequena tropa de três ou quatro jovens que se estavam meio nas tintas para a escola, mas engraçaram comigo, não me chateavam e tratavam-me bem. Respeitavam e achavam bem que fosse um bom aluno, interessado e sempre com excelentes resultados.

Entre eles, havia um rapaz que parecia razoavelmente endinheirado, inteligente e bastante rebelde. Embora bem colocado na sociedade, percebi depois que os seus amigos eram os mânfios mais terríveis e temidos da zona.

Interessou-se pelo meu caso. Não achou bem que o miúdo demasiado educadinho, aluno de topo do nono ano de escolaridade e um tanto infantil vivesse permanentemente no medo. O que sei foi que, um belo dia, os amigos dele fizeram uma espera aos meus perseguidores…

Na manhã seguinte, o líder do bando aterrorizador veio falar comigo. “Ah ah… Ouvi dizer que ontem chegaste a casa cheio de sangue… Ah ah”. Eu respondi “Ah ah”, mais qualquer coisa, de novo “Ah ah”…

Aquela linguagem cifrada de rua foi a forma de eu perceber que ele, o temível chefe, tinha sido acagaçado. Fora submetido por uma força maior. Acabaram-se os problemas. Para sempre. Assim foi nos 30 anos seguintes, até hoje.

Nunca mais o vi o rapaz que tornou tudo isso possível. Deduzo que tenha adquirido um bom lugar na sociedade, casado, sido pai… Mas não faço a mais pequena ideia. Amigo perdido nas voltas que a vida dá, e que certamente nunca lerá estas palavras, Obrigado!

“Ele tem as suas razões para pensar que sou um mau homem”

A velha carrinha faz-se ao caminho. Há três tipos de bolachas, sumos e chocolate a bordo, para o coffee-break, além dos quatro caixotes com cerca de cem sacos de sandes, bolos e leite no porta-bagagens, como sempre.

No primeiro ponto de passagem, damos os parabéns atrasados ao homem de barba e gorro, junto à garagem, ao lado do centro comercial. O convite para uma Ginjinha mantém-se. “Custa alguns euros mas vale a pena”. É que antes só havia dois tipos de Ginja – com elas e sem elas -, agora há vários outros.

Ouvimos reflexões sobre a vida militar. Explica que é um militar – aparentemente, uma condição permanente. Conversamos sobre a importância do Exército e das Forças Armadas.

No lugar mais povoado da noite, o homem que saiu da rua pelos seus próprios meios está bem disposto como sempre. O seu conhecido fala dele, a cinco metros de distância, mas não dialoga com ele. Explica que se conhecem bem mas não há relação entre eles. Andam em lados diferentes da estrada, e, se se cruzarem, mudam de passeio. “Ele tem as razões dele para pensar que eu sou um mau homem. Eu tenho as minhas razões para pensar que ele é um mau homem”.

Ao lado, o quarentão sorridente, quando lhe dizem que não pode conquistar a rapariga dos caracóis dourados que nunca sai de casa sem bolachas, diz que já a conquistou, não há nada a fazer. A mulher das revistas chama-lhe bebedor, e ele responde: “Já alguma vez me pagaste um copo?!”.

A ajuda não chega

Um rapaz jovem, com sotaque africano, vem falar connosco. Queixa-se de que a ajuda não é suficiente, que não chega a toda a gente. Que há muita gente que precisa, mas não está aqui nas carrinhas a receber comida. Diz que a ajuda tem que ser maior. Protesta com revolta e delicadeza, triste e diplomático. Antes de se ir embora, abençoa-nos a todos várias vezes.

Junto a uma das empresas mais ricas e prósperas de Portugal, um homem está nervoso e farto de estar na rua. Toma calmantes para dormir e para se manter sereno, mas está cada vez mais difícil. Procura trabalho e não encontra nada. Está no limite.

Fazer publicidade em vez de ter um tecto

Meia hora mais tarde, ao lado de outra empresa portuguesa milionária e privilegiada, há um homem que já podia ter saído da rua. Mas o dinheiro que iria gastar numa residencial é necessário para divulgar mais anúncios do seu trabalho, a reparar electrodomésticos, ou a exercer muitas outras tarefas especializadas que exigem boas mãos, profissionalismo e habilidade. Por isso, ainda está na rua. Na nossa próxima visita, espera já não estar.

Encontramos o casal de artistas, que tem uma cadela e mais de um gato. Quando nos deixa, o rapaz leva nas mãos dois sacos de comida, dois sacos de ração e dois copos de leite. Não é à toa que é malabarista.

Somos obrigados a interromper a conversa com o ancião sábio, cego e de aspecto irrepreensível que vive no chão da Avenida mais prestigiada e consumista da cidade. Acabaram-se as sandes.

Ao encontro de outra carrinha, à qual ainda sobra a comida que já não temos, encontramos o homem que gosta de leite. Diz-nos que hoje não precisa de ajuda, ainda tem alimentos para a noite.

Já temos mais sandes. São entregues aos dois últimos homens que encontramos. Ambos já dormem. De volta à sede da Comunidade Vida e Paz.

Ouvia o vento e interpretava o luar

A mulher doce e gentil chega à praça das cerejeiras e aspira o ar com enorme prazer. Dirige-se à pastelaria-roulote e diz ao patrão do pequeno estabelecimento que gostaria imenso de trabalhar ali. O homem, delicado e respeitoso, não a leva a sério, devido ao aspecto frágil e idoso da senhora, que diz aceitar com enorme agrado um terço do salário que ele pagaria normalmente.

Nas suas idas e vindas, insistindo na sua disponibilidade, deixa-lhe a pasta de feijão feita por ela em casa, como possibilidade de substituição da que o homem usa habitualmente para rechear os seus bolinhos. Ele deita-a fora, mas depois acaba por abrir a embalagem, por curiosidade. A substância é tão deliciosa que ele contrata a anciã sensível.

No dia seguinte, e por sugestão dela, a pastelaria abre muito antes do nascer do sol. A preparação da pasta de feijão, que se faz no próprio dia e seria ofensivo e indigno encomendar a qualquer entidade externa, demora muitas horas.

É preciso lavar, cheirar, escolher, ouvir, sentir a qualidade e as características do feijão, passá-lo por várias cozeduras, deixar que os ingredientes se habituem e adaptem uns aos outros. A partir desse dia, a pastelaria, que contava com meia dúzia de clientes, passa a ter sempre filas à porta desde manhã cedo.

A velhinha sábia e talentosa é alguém que ouve os ventos, interpreta o que dizem os pôres-do-sol e as noites de luar, as mensagens que circulam pelos ares do Mundo. Sentiu que o espírito e o coração daquele homem precisavam de ajuda, orientação e amor. Foi por isso que veio. E foi tudo isso que lhe trouxe.

Uma Pastelaria em Tóquio, realizado por Naomi Kawase em 2015 e estreado em Portugal em 2016, é um poema em forma de filme. Uma história de generosidade, simplicidade e carinho. Um relato que faz falta, em dias em que se ouve falar de tanta coisa no Mundo que não faz sentido…

Vi um saco a andar pela casa

Acordaste enrolada aos meus pés. Agarrei em ti. Peguei-te ao colo, dei-te muitos beijinhos, disse-te que és a minha fofinha, o meu bebé, o meu amor. Olhaste para mim com um ar feliz, amoroso, tranquilo, como fazes quando estás nos meus braços.

Fazes quatro anos hoje, Amélinha. Nunca vou esquecer os quatro episódios em que fiquei sem saber o que ia acontecer-te e o que devia fazer. O primeiro… Num belo dia, pouco depois de alguém comprar ou oferecer alguma coisa, vi um saco a andar sozinho pela casa.

Fui mexer no saco, e eras tu. Com o teu pescocinho preso nas asas, porque adoravas sacos, cordéis e asas, e já com dificuldades em respirar. Gritei pela minha gentil esposa, com quem ainda vivia na altura, mas entretanto o sentido prático sobrepôs-se ao pânico absoluto que me dominava.

Retirei os cordéis, afastei o saco, libertei o teu pescocinho lindo e delgado, que asfixiava.

Segundo episódio, ainda na primeira residência onde moraste. Alguém entrou em casa, e, passados uns segundos, começo à procura da minha pequenina.

Bem podia procurar, e assim fiz. Na sala, na cozinha, no quarto, na casa de banho, em todo o lado e mais algum. Na escada, em todos os andares, nada. Acabei por ir às traseiras do prédio. Lá estavas tu, na rua, à porta, com um ar puramente beatífico. “Estou aqui, leva-me, vamos”.

Terceiro episódio. Fui ao quarto onde costumava guardar as coisas que não estão sempre a ser usadas, e tu, sempre atrás de mim, sempre a enfiar o teu minúsculo ser pelas portas.

De repente ouço um gemido terrível. Meteste as unhinhas por debaixo da porta, sua doidinha. E ainda eras tão pequenina. A dor só durou um momento, felizmente.

Quarto episódio. Fui correr uma hora, como habitualmente, de manhã. Quando voltei tinhas destruído e engolido os comprimidos anti-insuficiência renal do Jeremias. Passaste o dia na clínica, a soro. Por precaução. A nossa doutora explicou-me depois que os comprimidos não te fizeram mal, mas podias ter ido muito facilmente desta para a melhor.

Neste momento estou no sofá a escrever quase só com uma mão, porque tu, meu amor, queres estar sempre ao pé de mim, em cima de mim, em mim, a dar-me o teu carinho, a tua dedicação incondicional e absoluta, a fazer-me festinhas, a olhar para mim, enquanto fazes aquele som que exprime a tua felicidade total.

É por isso que não me preocupo: Sei que tu sabes o que eu sinto por ti, se é que é possível perceber. Sei que o que tu sentes por mim é exactamente igual. Parabéns, Amélinha. Parabéns, Gááta, o teu verdadeiro nome.