A estrada fugiu outra vez

Auto-estrada, 100 quilómetros/hora.

Vrrumm, vrrumm, puf, puf… Que raio se passa? Coriscos me consumam. Acelero e o meu azulinho bonito e confortável não desenvolve.

Chego ao fim da auto-estrada, lentamente, devagarinho, saio na última. Percorrendo as três ruas que faltam, o motor faz um barulho que parece indicar que o Mundo vai acabar.

Entro em casa dos meus pais, sento-me.

O almoço e o tratamento são principescos como sempre. Entradas, refeição principal magnífica, bom vinho, salada deliciosa, frutos secos, sobremesa, cubos de chocolate preto, “o whisky do Vasco” e o café forte e aromático no final. As conversas habituais, o carinho de sempre. Entretanto…

– A tua inspecção não é no próximo mês?

– Sim, e além disso parece que tenho um problema qualquer na injeccção…

– Deixa-o cá, ponho-a ali naquela oficina, levas o meu.

– Obrigado!

A meio da semana já sei de tudo. O Cliozito a gasóleo precisou de bomba de injecção, bomba de água, bomba de (? qualquer coisa…), correia de distribuição, uma lâmpada, inspecção e sei lá mais o quê.

Três conclusões.

1- Nunca mais quero carros na vida

2- Se não fosse o meu pai tinha-me atirado da ponte (uma baixinha, também não exageremos)

3- NUNCA, mas nunca mais vou andar com o carro na reserva…

O melhor em tudo

Percebia-se logo que era um miúdo sério, sossegado, trabalhador e discreto. Nessa época, o rapaz trabalhava de dia, estudava pela noite dentro e vinha para as aulas muitas vezes com uma directa em cima.

Compreendi rapidamente que era uma coisa natural ele ser o melhor das turmas por onde passasse, e sem que tivesse que puxar demasiado pela cabeça, porque além de dedicado era inteligente e atento.

Não sei quando nos tornámos amigos, mas faz parte do meu núcleo duro.

Depois de rebentar a escala das boas notas por aqui, foi para Londres estudar Criminologia e Comunicação Social, curso que era inexistente cá. Chegou lá sem dinheiro, sem bolsa, sem casa, sem trabalho e a ter que pagar um balúrdio de propinas. Arranjou tudo isso num dia.

Esmifrou-se e desunhou-se noite e dia, como sempre, a trabalhar e estudar, agora em inglês. A viver, a sobreviver.

Descobriram-lhe um problema congénito e muito grave no coração. Quase morreu, ia dando a vida para concretizar o seu sonho e terminar o curso. Teve que voltar a Portugal por umas temporadas, devido a esta patologia séria e ameaçadora para a sua existência e para o seu funcionamento quotidiano.

Acabou o curso. Para esta formação rara e preciosa, são escassas as oportunidades reais em Portugal. Está a trabalhar num call center tecnológico, a dar assistência técnica, em inglês, em Portugal. A lidar com sotaques, educações (ou a sua falta) e personalidades diferentes de manhã à noite.

O meu heróico e dedicado amigo já cá veio uma série de vezes, largando tudo o que estava a fazer: Configurar-me o computador que me ajudou a escolher (o melhor e o mais barato de todos), a impressora-scanner que existia cá em casa, o wireless, o office, as especificações da minha página, ou apenas para me mostrar que estava a fazer tudo mal e não era preciso reinstalar nada. Quantas pessoas fariam isso?!

O meu amigo, discípulo e mestre da vida fez anos. É trintão pela terceira vez. Que venha aí mais um trio de décadas felizes, tranquilas, com amor, amizade, bem estar físico e espiritual, amigo.

Ah… Ele gosta muito de chapéus!

O diário do Natal que não aconteceu

Aquela senhora de voz rouca e ar austero não era alguém de quem parecesse muito fácil gostar, mas isso foi mais uma coisa que fui aprendendo com o passar do tempo. Oculto por aquele espírito que parecia zangar-se facilmente, havia um enorme coração de manteiga que não se deixava ver.

Claro que, se eu também começasse o dia irritado ou demasiado acelerado, era provável que desatássemos à traulitada por alguma coisa que não tinha mesmo nenhuma importância. Ao almoço, tudo desaparecia num instante.

Começou a ficar com a garganta particularmente atacada, mas não se decidia a ir ao médico. Quando finalmente o fez, descobriu um problema que já estava a tornar-se demasiado grave.

Nos meses que passou internada, e em que a visitava quase todos os Domingos, conversámos mais do que durante a vida toda. O que mais a entristecia era não saber se alguma vez ia voltar a ver o seu gatinho, que ela amava absolutamente.

Isso para ela era pior do que ter sido abandonada naquela situação pela sua cara-metade, algo que ela aceitou como um facto natural da vida.

Impressionou-me ir ter com ela uns dias antes do Natal e ter dado acidentalmente com umas páginas do diário dela, junto àquelas que ela me tinha mostrado de propósito. Nestas outras, que não eram para ser vistas por mim, descrevia ao pormenor a quadra natalícia que só ia acontecer daí a umas semanas. A festa, as visitas, a chegada da sua velha mãe, as refeições da época, os presentes. Quando me fui embora nesse dia, perturbado, não sabia o que havia de pensar.

Poderia parecer estranho que eu, um dos colegas de quem se tornou próxima neste período, não tivesse ido depois, no fim, prestar-lhe as ultimas homenagens.

Não é estranho. Para mim, o importante foram os colóquios dominicais que tínhamos quando estava internada. Diálogos fortemente enriquecedores para ela e para mim. Senti que, para ela, o mais relevante também foi isso. Até pelo brilho que lhe descobri no rosto, um dia em que tive que voltar atrás porque, com a minha proverbial distracção, me tinha esquecido de qualquer coisa, não sei o quê.

O que guardo comigo são essas trocas de palavras domingueiras, em que contámos toda a nossa vida um ao outro, e parecia ser isso que ela desejava na altura. Teria sido isso que ela também levou consigo, lá para o outro lado, embora nem eu nem ela acreditemos muito que existe alguma coisa depois disto. Até sempre, amiga.

“Um tipo ia arranjar-me um quarto e depois desapareceu”

Do lado direito da estrada, há uma rapariga estendida no chão.

No outro passeio, um casal e uma mulher a olhar. O par alemão garante-me que ali, no meio da rua, não é um bom sítio para dormir. Lá em Berlim, quando as pessoas o fazem à volta da estação, “vem alguém e rouba-lhes os pertences!“.

Chega um careca português, educado, falador, bem disposto, e toma conta da situação. O par alemão e a mulher portuguesa deixam o local, e chega outra senhora, jovem, bonita e simpática.

Após algumas tentativas falhadas, consegue chamar-se uma ambulância e vai-se tentando despertar a irlandesa de 30 anos, loira, olhos azuis, suja, alcoolizada, uns quilitos a mais na zona da barriga.

Agarra-se a ambas as minhas mãos para se levantar, com grande confiança. A morena gentil, magrinha e bem vestida diz que só tem marmelada e bananas, dá-lhe uma e ela vai ficando mais consciente e conversadora.

Puxa de um dos seus próprios cigarros e fuma. Diz que um tipo ia arranjar-lhe um quarto e depois desapareceu, há cinco minutos ou há uma hora. Há uma semana foi assaltada: Só tem 20 euros. Precisa de uma cama e uma refeição, os 20 euros não dão para tudo.

Não quer ambulâncias nem hospitais, não tem dinheiro. O homem brincalhão e expedito que dirige informalmente a ocorrência, e a morena elegante, garantem-lhe que nos hospitais portugueses ninguém deixa de ser tratado por não ter dinheiro. Mas ela recusa terminantemente a ambulância.

O careca com iniciativa tenta cancelar a vinda da ambulância, mas esta já está a caminho, não dá. A irlandesa levanta-se e diz que vai comprar cigarros. O homem com óculos e sem cabelo diz-lhe que não vai ficar à espera que ela vá comprar tabaco enquanto não chega a ambulância.

Ela diz que não há problema. Vai-se embora. O homem também. Bem como a rapariga que lhe deu uma banana e tentou marcar-lhe uma dormida, com o smartphone. Não conseguimos resolver os problemas da turista desprevenida, mas pelos menos já não está caída a um canto no meio da rua…

Uma existência à qual não sei bem se podia chamar-se Vida

Não passam o tempo todo a ligar-me, quando o fazem para os vários números ao mesmo tempo nunca são boas notícias, e aí vem mais uma. Dizem que já foram para baixo, percorreram aqueles 200 quilómetros para mais uma ocasião difícil. Foram duas, intervaladas por menos de 15 dias.

Mais alguém que compunha as minhas memórias de infância. Aquele bigode preto, aquele sorriso malandro, aquele rosto aciganado e escuro que lhe dava mais charme.

Homem de labuta e dureza, a vida toda. Criou as duas filhas, educou-as, deu-lhes o que ele pôde e o que elas quiseram.

Ao almoço, o meu pai costuma contar histórias dele. Envolvendo espingardas vendidas à socapa, galos mortos e cozinhados de forma mais ou menos clandestina e outras tantas traquinices.

Foi mais um que não teve facilidades nenhumas nos seus últimos anos, bem pelo contrário. A doença tirou-lhe tudo. As capacidades, o prazer, a mobilidade, a consciência.

Durante muito tempo, as máquinas faziam tudo por ele. Uma existência à qual não sei bem se podia chamar-se Vida.

Para mim fica o sorriso, o sotaque de homem cheio (mas elegante) e vivido, os olhos matreiros e a cara divertida. Um ser personificando a essência do meu Alentejo. Adeus, tio.

Andamos cá a fazer alguma coisa

Desde que fiquei desempregado nunca mais tive tempo para ir ao ginásio. Hoje é Sábado, decidi abrir uma excepção.

Saio de casa, entro no Metro, repleto de turistas. Saio no Rato, rumo ao ginásio low cost, com ameaçadores pesos e barras de elevações.

Treino devagarinho, mas dou-lhe com muita força na passadeira, não é problema para alguém que corre e caminha algumas vezes por dia. Custa levantar os halteres, e mais ainda erguer-me na barra de elevações, ou fazer flexões-escorpião, passando uma perna por trás da outra e triplicando a dificuldade.

Passo no teste com umas dores no ombro, para já, e uns litros de água a seguir ao treino. Volto a enfiar-me no Metro, que continua cheio de turistas.

Vou dar uma volta pela Baixa, aconselhando os viajantes a visitar os veleiros que atracaram em Santa Apolónia. São absolutamente gigantes, são lindos, a entrada é gratuita, vale a pena.

Passo pelo Mac Donald’s. Toda a gente sabe, obviamente, que «Ir ao Mac Donald’s e pedir uma salada seria como alguém ir às meninas e esperar um abraço». Para complementar, uma Ginjinha e um gelado.

Desço a Baixa e vou vendo os espectáculos dos artistas de rua, uns mais magníficos que outros. Está muito calor, vou-me hidratando aqui e ali.

Chego ao arco da Rua Augusta. Há um rapazinho magro de cabelo curto que toca violoncelo. Como todos os músicos da Baixa hoje em dia, também ele se faz acompanhar por uma pequenina e muito potente amplificação acústica.

Mas este som é muito mais belo e completamente diferente. Mostra-nos que nestes dias de fins de Julho, intensos e escaldantes, a vida é maravilhosa e merece ser sorvida a cada instante. É uma dádiva dos Céus.

Haja mais ou menos prosperidade ou bens materiais, estejam os amigos e familiares todos de férias ou junto a nós, temos que desfrutar do sol, da música, da beleza da existência. Devemos perceber que andamos cá a fazer qualquer coisa, por alguma razão.

Estamos aqui, no mundo, na vida, que devemos agradecer todos os dias ao universo… Vivemos!!

Dorme com um olho aberto. Se passar um gato, ele sabe

Tem os fones profundamente colocados nos ouvidos. Pela primeira vez em meses, o homem do rádio e do amigo imaginário, instalado do lado de fora do portão de uma garagem, apenas diz boa noite, agradece e não solicita mais conversa.

Mais à frente… O homem que está sempre a dormir só fala de seis em seis anos, e só com a rapariga dos caracóis dourados que nunca sai de casa sem bolachas. Ela não veio hoje.

Na paragem seguinte, damos de caras com H., que está farto da rua, dos roubos que sofre diariamente e de chegar à porta dos empregadores e constatar sempre que, por mais rápido que seja, alguém respondeu antes ao anúncio.

Uma mudança radical

Vamos ao encontro dos homens indianos instalados na pedra ao lado do supermercado. Durante muitas e muitas rondas nocturnas de apoio à gente que nada tem, não conseguimos falar com eles, romper as barreiras da comunicação linguística e ajudá-los a encontrar um caminho para fora da rua.

Desta vez, há um novo elemento neste trio, e percebe Tudo o que dizemos. Combinamos uma visita dos técnicos e assistentes sociais da Comunidade Vida e Paz, para o dia seguinte, e prosseguimos.

No local da cidade mais concorrido por seres humanos carenciados e mais apoiado por instituições de solidariedade, cruzamo-nos com A. O nosso amigo de muitos anos, que, graças a si próprio, já não vive debaixo das estrelas, informa-nos de que nós, pessoas, somos a única criatura que inventa e come tudo e mais alguma coisa e não morre.

Não morre, é como quem diz. Isso é uma questão de tempo, digo. A. responde-me, filosoficamente: “Bom, pois, isso é próprio da existência, a morte é inevitável”. Ao lado, o homem que está sempre bem disposto diz que gostava de ter um jacto e uma casa em cada parte do mundo, como Cristiano Ronaldo.

Há dois dias na rua

Meia hora depois conhecemos M., há dois dias na rua. Sem casa, sem trabalho, sem abrigo. É o terceiro homem que convencemos esta noite, neste caso com aparente sucesso, a visitar o Espaço Aberto ao Diálogo (EAD) da Comunidade Vida e Paz, para que os técnicos e assistentes sociais o ajudem a pôr em prática as suas competências profissionais especializadas, a conseguir casa e trabalho.

Com o homem de mãe siciliana e pai ucraniano, 15 minutos antes, não tivemos tanto sucesso. Já não acredita nos portugueses, nem em nada. Só nos 15 euros que lhe pagam para guardar a porta de um armazém. Dorme com um olho aberto e outro fechado. Se passar um gato, ele sabe.

Aproximamo-nos do fim. O sábio e filósofo que tem 83 anos, é cego, tem por lar a calçada há 30 anos e nunca cheira mal nem tem mau aspecto responde, quando pergunto como está: “Estamos Vivos!”. Hoje não quer mais conversa: Não trouxemos a rapariga dos caracóis dourados que nunca sai de casa sem bolachas.

“Em nome do Führer, nomeio-o Burgomestre”

“Não se podia dizer que desejasse ser fabulosamente rico, o que igualmente lhe teria exigido energia e lhe traria muitas preocupações. No entanto, no mundo havia realmente discretas fontes de rendimento, rendas, ou muito simplesmente um bom ordenado remunerador de uma função tranquila e honorífica. (…)

Statsenko, chefe da Repartição, não trepava de patamar em patamar mas subia um a um os degraus da escada hierárquica. (…) Estava descontente porque a vida se recusava a oferecer-lhe todos os seus bens sem qualquer dispêndio de trabalho, de energia e de conhecimento. (…)”.

A personagem completamente secundária de A Jovem Guarda, de Alexandre Fadéiev, oferece, rastejando, os seus préstimos ao regime nazi, no momento em que este se instala na Ucrânia. O oficial nazi responde com desprezo, com ar extremamente enojado: “Diga-lhe que, em nome do Führer, o nomeio burgomestre [responsável municipal]”.

Nascida em 1945, esta descrição é do mais actual que há. Continuamos rodeados de gente cujo grande objectivo na vida é enriquecer sem nunca, ao longo de toda a sua existência, ter produzido nada de útil, relevante ou benéfico. Essa é uma das razões….

Estão criadas as condições

A outra razão é esta: Há 77 anos, nas vésperas da guerra, tínhamos regimes fascistas em Itália, Espanha, Alemanha e Portugal, e o regime comunista na Rússia (aliás, na União Sovética). Hoje, temos partidos ou políticos extremistas, radicais e anti-sistema (mas sem alternativas ao sistema) a ganharem cada vez mais influência política: Nos Estados Unidos, na França, Áustria, Finlândia, Holanda, Itália, Alemanha, Inglaterra. Regimes anti-democráticos na China, Rússia e Turquia. Na Europa, países a afastarem-se uns dos outros e a renderem-se de vez ao egoísmo, à intolerância, a olharem para os seus umbigos e nada mais que os seus umbigos.

Estão criadas as condições para se repetir tudo, e para que muitos Statsenkos nasçam em cada esquina. Nós, com o nosso voto, podemos fazer alguma coisa para travar a estupidificação do mundo e a repetição da História.

Isto não vem nada a propósito, mas Hitler foi eleito democraticamente.

O Homem dos Livros ia ficando sem pequeno-almoço

A noite encontra-me do outro lado do rio, num espectáculo de Manuel João Vieira. O artista canta o testículo; as prostitutas; uma adaptação de uma melodia agora dedicada a Ricardo Quaresma, explicando que não se trata de racismo nem de xenofobia, mas exactamente do contrário… Acerca da canção sobre a pedofilia com a avó, é menos detalhado nas explicações prévias.

Comigo está o homem dos livros, o meu grande amigo que descobre as obras mais preciosas, raras e perdidas, e faz com que cheguem a minha casa.

Desta vez, conseguiu encontrar um volume com a parte que me faltava d’ “A Ressureição”, do aclamado Leo Tolstoi, que já se encontra nas minhas mãos.

A expectativa é grande. No dia seguinte vai à Feira da Ladra, em busca de mais relíquias sem preço, pelo que a minha casa lhe parece um bom ponto de paragem. Como irá reagir a minha Amélinha, aliás, “Gáata!”, que nunca viu este meu querido amigo?!

Algumas cervejas depois, entramos em casa, já de madrugada. Pela primeira vez desde que faz parte do meu mundo, a Gáta não foge nem se esconde perante alguém com quem nunca se cruzou. Anda por ali, à nossa volta, sem medo do meu intelectual companheiro.

Fumamos e deitamo-nos. Na manhã seguinte, ouço um leve ruído, mas não o vejo. Após sucessivas buscas, encontro o meu livresco camarada fechado na sala, a tomar o pequeno-almoço. O Jeremias, o meu ronronante gato-cão, não dava descanso à caixa dos cereais e ao pacote de leite, de maneira que ele teve que se refugiar e enclausurar ali, para poder engolir a primeira refeição do dia.

Passado pouco tempo, o homem dos livros, que hoje não tem que dar assistência aos seus alunos, já que é sábado, vai à sua vida, em busca de preciosidades de papel amarelo e roído pelas décadas. Antes de sair, a habitualmente esquiva e fugidia Gáta ainda o deixa fazer-lhe umas festas…

O Destino de Dostoievsky

A placa indica o destino, em letras bem visíveis, que deixam ler claramente “Café Aqui Há Gato”. Foi por isto que as pernas caminharam durante mais de uma hora, debaixo de 30 e muitos graus, às três da tarde, cobertas pelos calções pretos de corrida, debaixo da T-Shirt cor de laranja fluorescente, a acompanhar os Asics Negros das sessões de jogging matinal. Aliviado e desidratado, entro por ali adentro e dirijo-me à parte que me interessa.

Já lá dentro, sou parado mais ou menos a tempo pela simpática e agradável moça que me explica ser necessário efectuar um registo na caixa, antes de entrar naquela parte do café. Tenho à escolha qualquer bebida ou doce, menos cerveja, infelizmente. Decido-me pelo mais parecido, uma 7-Up a saltitar de semi-congelada e refrescante. Agora já posso voltar para lá, para o outro lado.

Dostoievsky está demasiado ocupado, a ser o elemento mais sociável e divertido do Café Aqui Há Gato, na Calçada da Estrela, em Lisboa, perto da Assembleia da República. Esta é uma nova etapa do Destino de Dostoievsky. Começou por ser abandonado à porta da Impala, o grupo editorial que pôs comida na minha mesa durante 12 anos. Ficou, depois, entregue às mãos delicadas e carinhosas da Rafeiros SOS, que o deixou em impecáveis condições de higiene, saúde e bem estar.

Agora, Dostoievsky está no Café Aqui Há Gato, na companhia de vários outros felinos sem dono, das gentis e sensíveis raparigas que trabalham no local e dos clientes animados, divertidos e curiosos que ali vão beber um copo, comer um bolo, conhecer um gatito… O objectivo nobre, altruísta e necessário é que, com o tempo, todos os doces e meigos felinos que se encontram no café venham a ser adoptados por famílias amorosas e conscientes, que os mereçam e saibam assegurar a sua felicidade e bem-estar.

Ao receber, feliz e bem disposto, as mordidelas meigas e patadinhas amistosas de Dostoievsky, penso nisso mesmo. Que todos os seus novos amigos de quatro patas, e Dostoievsky, tenham um destino tão grandioso como aquele que lhe deu o nome. Que sejam felizes. Acredito que isso vai acontecer, Dostoievsky. Meu doce Dostoievsky…