A tarifa e o troco

O dia número oito da vida depois da vida como ela era antes. Os momentos médicos e desportivos matinais, um almoço de maravilhosas e magníficas favas com os acompanhamentos maternos tradicionais. Uma rápida e agradável viagem de metro e autocarro até ao outro lado da cidade (outro, mas próximo), para um encontro de reflexão e busca de oportunidades.

 

Desabituado de fazer ultimamente este tipo de percurso em transportes, ainda me lembro, no entanto, de comprar uma viagem para o autocarro, na estação de metro. Mas não duas, para ir e voltar: As capacidades de previsão não chegam para tanto.

 

Horas depois, lá na outra ponta da capital, não parece haver onde adquirir viagens pré-compradas. Entro no eléctrico, moderno e rápido. A tarifa de bordo é o dobro do preço de uma viagem pré-comprada. Sentindo-me atingido no bolso, bato à porta da cabine com o objectivo de pagar a tal tarifa.

 

O homem da cabine remete-me para a máquina automática, onde está escrito que aceita moedas e notas de cinco e de dez. Tiro a nota de dez do bolso e introduzo-a na máquina. Uma vez, duas, três, e por aí fora. Sempre rejeitada.

 

Um rapaz português de olhos muito azuis olha para mim interrogativamente: A máquina aceita ou não aceita notas? Explico-lhe que as coisas não estão a correr muito bem. Responde, filosoficamente: “Epá!”. E sai, na paragem seguinte.

 

Fico especado durante longos minutos a olhar para a máquina, fria, anónima, não especialmente competente. Chego à minha estação e saio.

“Epá, tu consegues fazer uma maratona!” Hã?!

Passeávamos pelas dunas, mas não era bem passear, porque, ao fim de três metros a subir, já arfava e rastejava. Fisionomicamente era idêntico ao bonequinho da Michelin, e tive muita pena do pobre camelo que me carregou até à civilização. Até dizia que nunca mais voltava a ver a aparentemente linda e maravilhosa auto-estrada do sul…

 

No meio de tudo isto, os meus dois amigos insistiam comigo. Que estava gordo e disforme, que tinha que começar a mexer-me, a fazer algum desporto. Um deles dava-me o exemplo do cunhado, a quem o médico dissera, dramaticamente: “Quer ter um AVC? Ai não? Mude de vida”.

 

Aquela conversa irritava-me solenemente, porque era a mais básica das verdades. E ficou a retinir cá dentro da cabeça, como uma bomba-relógio. Até ao fim do ano.

 

Quatro ou cinco meses depois, andava eu a percorrer uma capital, visitando os museus, as casas históricas, as exposições… E andando, metade do tempo, a pé. Com a frase “tens que te mexer” gravada no cérebro.

 

Inicia-se o novo ano e começo a correr. Depois da primeira corrida, no dia seguinte, era-me totalmente impossível descer escadas. Continuei em frente. Cinco quilómetros aqui, dez ali, uma mini-maratona de vez em quando. E, passados uns quantos meses, a primeira meia-maratona: 21 quilómetros. Doeu, custou, mas fizeram-se.

 

O calendário foi virando as páginas. Um mês, sete, doze. Um belo dia, um dos tais amigos vira-se para mim: “Bora fazer uma maratona”? “Estás maluquinho!”, penso eu. Mas os dois companheiros desportivos – o amigo e o tal cunhado, que, entretanto, já mudara de vida – tinham uma motivação sem limites e sem possibilidades de esgotamento.

 

Fomos treinando, durante menos de meio ano. Vinte quilómetros, trinta, trinta e picos. Chega enfim o grande dia. Eu mantenho o mesmo pensamento das primeiras horas. “Isto é uma aventura, estes tipos são doidos, mas têm ideias loucamente divertidas e eu vou até onde conseguir”.

 

Começamos a prova, e os primeiros dez, quinze grupinhos de mil metros são canja, algo que já nos habituáramos a fazer quase todos os dias, bem cedo, de madrugada, antes de ir trabalhar. O tal amigo do AVC já se livrara completamente desse risco (pelo menos, no que toca ao estilo de vida), há muito tempo. É sempre ele o que tem mais pica, é ele que vem conversando, mantendo a boa onda e a disposição alegre e tranquila. Até aos trinta quilómetros, a célebre e mítica barreira dos maratonistas.

 

É na tal fronteira que abrando um pouco. O meu companheiro mantém exactamente o mesmo ritmo até ao fim. Mas já fizera o que tinha a fazer por mim. Companhia, animação, tranquilidade, até vararmos o muro mental dos trinta. É no final da terceira dezena de quilómetros que se dá o combate decisivo. Ou ficamos, ou continuamos. Até ao fim.

 

Prossegui. 30, 31, 34, 35. A dada altura torna-se claro e óbvio que chegarei ao final. Mais depressa, mais devagar, mais rastejante, mais eufórico, mas é nítido e indubitável que estarei lá. Nos últimos quatro ou cinco, digamos que se vai “de boleia”, como numa descida, com todos os santos a ajudar, e quase como se já víssemos a meta. No último, sentimo-nos carregados em ombros, coroados de glória, protegidos pelo Olimpo, por termos vencido esta batalha connosco mesmos. A minha primeira maratona. A primeira de quatro.

A estrada dançava de um lado para o outro

Dançava de um lado ao outro, aos ziguezagues, da esquerda para a direita e ao contrário, rápida e imprevisivelmente. Era estranho que a estrada fizesse aquilo, não se percebia, não havia razão. Tentei durante intermináveis momentos fazer com que a estrada e o automóvel coincidissem no mesmo percurso, deslizando os dois de forma coerente e harmoniosa. Não o consegui por muito tempo.

 

No fim, via e veículo acabaram por encontrar-se, de forma violenta e pouco agradável. O carro parou em claro e inconciliável diferendo com o separador central. Saí de lá de dentro e reparei, distraidamente, que a parte da frente parecia totalmente destruída. Com automobilistas a acelerar à minha direita e à minha esquerda, peguei com aparente tranquilidade no pára-choques em bastante mau estado e totalmente separado do meu Clio. Demorei algum tempo a colocá-lo no interior, no banco de trás, já que não coube no porta-bagagens.

 

Completada a tarefa, dirigi-me, com alguma irritação, para o meu local de trabalho. Era dia de reuniões externas, o meu director demorou algumas horas a chegar. “Chefe, tenho um problema. Tive um acidente. Tenho que me ir embora para resolver as coisas do carro”. Sem dar muito tempo para réplicas, fui.

 

Peguei no meu azuleco, que há alguns anos me transporta para todo o lado, fui até à margem sul. A minha mãe estranhou ver-me de visita, num dia de semana, nem era momento de folga nem nada do género. O meu pai não estava, liguei a dizer que havia um problemazito com o meu carro, para ele ouvir a minha voz, não fosse chegar a casa, reparar na viatura assim e não me ver a mim.

 

O meu pai tomou o assunto em mãos e braços… Mudou-me o pneu, que rebentara, para conseguirmos ir até à oficina de confiança. E lá fomos. Rapidamente se percebeu que uma boa parte da secção frontal tinha que ser substituída. 100 euros esta peça, 500 aquela, 300 a outra, e por aí fora.

 

Todas as histórias têm uma moral, não há excepção. Em dias de chuva muito intensa, em auto-estradas inclinadas, inseguras, com o piso encharcado, e os pneus bastante carecas, o melhor é nunca passar dos 50…

Só existe porque esteve para não existir

Um texto que só existe porque esteve para não existir? É um facto, foi assim que aconteceu, mesmo, a verdade é essa. E a explicação é a que se segue. Acordara extremamente cedo, havia muito a fazer. Tratamentos felinos, corrida matinal, ida semanal ao veterinário, redacção e publicação da(s) crónica(s) da manhã.

 

Sento-me à frente do computador, ligo-o… Não aceita a password nem o pin, após várias tentativas. Peço ajuda por mail, através do telefone. Mandam-me um código. O código não funciona, após várias tentativas.

 

Desespero. Ligo ao meu muitíssimo gentil e paciente amigo que me aconselhou na compra do computador, e me ajudou a instalar o software. “Ai é? Eu vou para aí!”. Quantas pessoas no mundo fariam isto por alguém? Não conheço mais nenhuma.

 

Sento-me no sofá, à espera, Jeremias a miar nas pernas, “Ressurreição”, de Tolstoi, na mão esquerda, mão direita a apoiar a Amélia, que se instala no meu pescoço, encostada à minha cara. Não ia deixar cair ou escorregar a ronronante menina, claro.

 

Esqueci-me de dizer ao amável e tolerante amigo que tinha um encontro às 14H30, fora de Lisboa, e, ainda por cima, importante e decisivo. O amigo veio o mais depressa que pôde, mas, naturalmente, não voa. Chega na altura em que ainda tenho que acabar de preparar tudo, e sair, bem depressa, para não me atrasar. Por milagre, resolve o problema em dois minutos. “Obrigado, desculpa, amigo, agora tenho que acelerar!”, digo (senti-me culpado).

 

Lá vou eu, a tentar lembrar-me correctamente do sítio, do caminho, de como chegar lá. O lugar não é assim tão longe, e é facílimo de encontrar. Estacionar também não é complicado, depois de uma voltita ou duas. Chego uns cinco minutos antes da hora marcada. Não há segurança na porta, que está fechada, bato e toco sem resposta. Aparece alguém que trabalha no edifício, me abre a porta e indica na direcção do elevador. Ainda não estou atrasado.

 

A conversa corre muito bem, aponta-me pistas, ideias e caminhos para o futuro. Nesta altura, é tempo de voltar ao ponto de partida e perceber que o dia até está a ser bastante produtivo e enriquecedor.

A gata que escolheu o seu próprio nome

Entrei no hospital e parei logo à entrada. Deparei-me com uma espécie de “jaula” cheia de bebés pretos, encavalitados uns por cima dos outros, ou nos ramos em miniatura, aos pulos e aos miados, como se fossem macaquinhos negros na selva. Eu já não saía dali, levava aqueles bonequinhos vivos para casa e acabava-se a conversa.

 

Houve uma pequenota que veio logo meter-se comigo, a fazer conversa e a pedir brincadeira. Era aquela… Tinha dois meses. Nos minutos seguintes, enquanto se procedia às mais que escassas burocracias exigidas para adoptar uma gata de dois meses, ela andou a correr e a saltar, ou melhor, a voar, de uma ponta à outra do hospital. Era mínima, mais ou menos do tamanho de uma mão humana.

 

Para casa, fui a conversar com a bebé, a explicar-lhe como ia ter uma vida feliz, sossegada, tranquila, cheia de amor e aventuras deliciosas… Quando chegou, saiu de dentro da transportadora, viu os gatos “gigantes” (adultos) lá de casa e bufou-lhes, para os meter no lugar.

 

Era tão rápida e imprevisível que esteve para se chamar Flecha. Acabou por ser Amélia, em homenagem a um outro bichinho, que existiu no passado e percorreu uma existência igualmente feliz, agitada e animada. O problema é que a Amélia não se chama Amélia. Nunca considerou que fosse esse o seu nome. E, à força de tantas vezes ouvir “Gata!!” dirigido a ela, em tom zangado ou carinhoso, consoante as tropelias ou as atitudes ternas e doces que estivesse a protagonizar, decidiu que se chama Gata.

 

Desde os primeiros dias em casa, habituou-se a olhar para mim, a piscar os dois olhos ao mesmo tempo e a ronronar. Tornou-se normal que eu lhe pegue ao colo e que ela fique a fazer “rrrrrrrrrrrrrrr”, carinhosamente, durante o tempo que nos apetecer. Quando vê que estou mais tempo em casa, mia e mia para mim, a dizer: “Meu querido humano!! Estás aqui!! Oh! Que bom!!”.

 

Quando foi esterilizada, eu andava com uns problemas na vida… Levava-a, para a operação, para o pós-operatório, para os ajustes no tratamento, a mudança do penso, da camisola… Ia-lhe contando as chatices que enfrentava então, íamos conversando um com o outro. Ela: “miau, mnhau, mieeu”. Eu: “Olha, sabes, bebé, estou um pouco triste, passa-se isto e isto assim e assim”.

 

Houve um dia em que eu estava extremamente chateado (não acontece muitas vezes) com um amigo, que me tinha feito uma grande desfeita e que era visita habitual lá de casa, desde há muito tempo. Ela conhecia-o bem e gostava bastante dele, e ele dela. Naturalmente, essa zanga não tinha nada a ver com os membros de quatro patas da família, que não faziam ideia do que se passava. Mesmo assim, quando o meu amigo passou pela Amélia, ela estava em cima do armário da cozinha e fez uma coisa que nunca tinha feito em toda a vida. É inofensiva, nunca lança uma pata ou um dente a quem quer que seja, mas assanhou-se, irritada. A minha gata sentiu o que ia cá dentro e foi uma espécie de megafone da zanga que eu tentava controlar no momento.

 

Estou habituado a tê-la enrolada nos meus tornozelos, quando leio no sofá, ela a dormir, feliz, com os estremecimentos próprios dos sonhos. Abraçada a mim debaixo das mantas, no Inverno. A esfregar-se no chão para brincar comigo. A miar bem alto, de felicidade, pela minha presença.

 

Os meus gatos são a minha alma, o meu coração, o meu espírito e a minha carne. Esta “peste fofa”, como lhe chamo também, é qualquer coisa que não se consegue descrever. As palavras são simplesmente incapazes de dizer o que eu sinto por este pedaço felino de mim.

Entrei com uma arma no aeroporto

Olhou para mim, cara ligeiramente empoeirada, desdentada, cabelos desgrenhados e linda. A miúda libanesa de seis ou sete anos fez-me perceber, por gestos e expressões infantis, que queria que eu lhe tirasse uma foto. Tirei, mas não ficou satisfeita. Os gestos carinhosos continuaram, eu a pensar que ela achava que a máquina era digital e queria ver a imagem. Não, ela desejava, também, tirar-me uma foto a mim. E fez, numa pespectiva invulgar, do alto dos seus poucos centímetros, o retrato da minha cara. A simpatia e meiguice da menina comoveram-me.

 

Estava em Trípoli (cidade libanesa com o mesmo nome da Trípoli líbia), não muito longe de Beirute, e passeava pelos soukhs, uma mistura labiríntica e encantatória de mercado e bairro habitacional. Perdia-me por ali, maravilhado com tudo o que via, ouvia, sentia.

 

O país já tinha vivido longas e intensas guerras, mas na altura passava por um período menos agitado. Embora existissem alguns conflitos políticos e religiosos latentes, um ou outro atentado de vez em quando, podia considerar-se um país pacífico.

 

Toda a gente dizia que era um disparate ir passar duas semanas de férias no Líbano. O que é facto é que saía todas as manhãs, às cinco, seis horas, de Beirute, apanhava um táxi por 50 cêntimos, guia da Lonely Planet debaixo do braço… A seguir, metia-me numa carrinha, ou autocarro, ou algo intermédio, alguns deles já com uma quantas décadas de serviço em cima. Entrava nestes veículos, música árabe de volume no máximo, ninguém com aspecto meramente ocidental a bordo, e lá ia. Partindo do princípio que o referido transporte ia para algum sítio que eu tinha visto horas antes no guia, que o taxista indicara como sendo o destino do “autocarro” e que me interessava conhecer. Nunca correu mal.

 

No Líbano, conheci o prestável cônsul português, e – foi isso que fez toda a diferença – a minha amiga Mia. A amável, gentil, tolerante e compreensiva senhora, luso-franco-libanesa, introduziu-me, na altura, ao mundo dos guias da Lonely Planet, a bíblia do viajante. Em algumas horas, ensinou-me a conhecer o país, a marcar excursões, a apanhar um táxi, a atravessar a rua. Passado esse tempo, deixou-me livre para desfrutar deste país magnífico e surpreendente, que já foi considerado a Suíça do Médio Oriente.

 

Quando vamos a passear, sozinhos, pelas ruas libanesas, as pessoas vêm ter connosco. Oferecem-nos pão, cigarros, cervejas. Querem que lhes tiremos fotografias. Encontramos pessoas que falam inglês, francês, até alemão… Nesta época (2005), apesar de todos os conflitos que o país tinha vivido, e de alguns deles se manterem em estado latente, um viajante de visita não sentia qualquer sensação de insegurança. Passeava-se por todo o país a qualquer hora sem problema algum, e todas as pequenas aventuras do dia-a-dia começavam e acabavam bem.

 

Tudo tão calmo e tranquilo que até entrei no aeroporto com uma “arma” – uma Beretta de 9 milímetros, que embora fosse um isqueiro, estava tão bem feita que dava para assaltar um banco sem quaisquer dificuldades. Fui com ela dentro da mochila, passou nos detectores e foi encontrada, mas o máximo que mereceu foram algumas perguntas dos militares que faziam o controlo de bagagem, várias risadas da sua parte e a tentativa infrutífera de lhe gastarem o gás, acendendo cigarros uns aos outros, antes de me mandarem embora com ela, outra vez, dentro da bagagem.

O felino que queria emigrar

Saltou para o meu colo e disse-me que queria carinho. Ficou nas minhas pernas e amassou-me o estômago, olhou para mim e pediu-me amor. Eu estava rodeado de duas pessoas que amavam gatos, respiravam apreciação felina por todos os poros, tinham, cada, duas mascotes ronronantes sob a sua protecção. Eu era o eremita urbano, aquele que gostava muito dos bichos dos outros, mostrava-lhes compreensão e consideração, e, depois, ia cada um à sua vida.

 

Rejeitava terminantemente ser responsável por algo ou alguém que não eu mesmo. Mesmo assim, aquele animalzinho preto, jovem, pequeno, magro, não saía da minha beira, e eu, naturalmente, aceitava a meiguice e a doçura dele, e retribuía.

 

No encerramento do fim-de-semana de praia, as duas pessoas amáveis e sensíveis que estavam comigo nesses dias explicaram-me, ao longo de uma noite regada com algumas cervejas e temperada com vários cigarros pensativos. Aquele gato preto lindo e meigo e eu tínhamos criado uma relação. Eu não podia deixá-lo para trás, não era esse o Destino.

 

Restava descobrir quem é que, ali no campo, tinha alguma relação com este menino, e se era preciso pedir autorização para ficar com ele. Rapidamente apurámos que o suposto dono era um vizinho, alguém que tinha animais e crianças, e desprezava tanto uns como outros: “Podem levar o gato, podem!”.

 

Na última manhã, deslocava-me eu de casa para o quiosque, de carro, para ir comprar o Público, mas não conseguia. O Chiquinho enfiara-se-me no carro e não me deixava ir embora. Tive que acalmá-lo e deixá-lo bem tranquilo e acompanhado, antes de poder ir em busca das notícias da manhã.

 

O Chiquinho veio comigo e tornou-se o meu gato, o meu amigo, o meu companheiro, o meu psicólogo, o meu ouvinte, o meu analista, o meu filósofo, o amor da minha vida. Se alguém cá em casa estiver triste, em baixo, deprimido, preocupado, angustiado, em desespero, o meu pequenino (já lá vão seis anos) sabe. Se os meus amigos estiverem stressados, ansiosos, perdidos na vida e no Mundo, o meu menino apercebe-se de imediato. E em todos esses casos, ele vai fazer o seu trabalho: Vem para o nosso colo, conversa connosco, mima-nos, acompanha-nos, acarinha-nos. Cura-nos.

 

O Chiquinho às vezes mostra-me que percebe em que, ou em quem, estou eu a pensar, mesmo que eu não lho demonstre de forma absolutamente nenhuma. Sente o que eu sinto. O meu gato fala comigo todos os dias. Pede-me atenção, carinho, festinhas, repreende-me se estou muito tempo (dois minutos) sem lhe dar atenção. Os meus amigos ficam espantados a olhar para ele, quando percebem que os miados dele não são miados. São palavras e frases que ele me dirige e troca comigo, na língua dele, que eu fui aprendendo ao longo de meia dúzia de anos. O meu Chiquinho, se estiver na outra ponta da casa e sentir que eu estou a achar-me meio abandonado porque ele não aparece junto de mim há um bocado, desperta de repente e vem, a correr, a miar, a pedir-me desculpa e a oferecer-me a sua companhia.

 

O meu tio Chico diz que o Chiquinho quis “emigrar” do campo para a cidade, assim o fez e deu-se muito bem, mudou de vida e ficou melhor, teve sorte. Pois eu não concordo nada com isso. É que quem teve toda a sorte no meio desta história fui eu.

Os tascos não são todos iguais

É um restaurante japonês com menus a menos de cinco euros, dirigido por paquistaneses e indianos, e que se chama “Pastelaria Flor do Mar”, mesmo em frente à minha casa. Só por isso vou disfarçadamente espreitar o ambiente e ver se posso recomendar o cosmopolita lugar aos meus amigos.

 

A investigação começa pelas questões básicas… Aparece primeiro um senhor indo-paquistanês que fala um inglês sumário e nenhum português, e pergunto se aceitam cartão multibanco, ou cartão refeição. O homem responde, no tal inglês asiático, que só a partir de 20 libras. Libras? Não quer dizer euros, amigo? E isso não é muito para limite mínimo de uso de cartão?

 

Surge um rapazito novo, simpático e comunicativo. “O cartão refeição é Milenium, não é”?, questiona. “Sim”, respondo. “Ah, sim, não há problema”, afirma ele. Mas continua a haver limite mínimo, embora agora já seja só de 12 libras, (ou seja, de 12 euros). Volto costas: “Forget it”, é demasiado complicado.

 

Nesta zona da cidade, há frutarias, lojas de conveniência, mercearias, tascos e restaurantes indianos e ou paquistaneses a cada dois prédios. É de noite, e a conversa estimulou a irritação e o apetite. Vou passando por esses estabelecimentos asiáticos – e brasileiros também -, todos demasiado caros para os dias que correm.

 

Esquina após esquina, prédios e mais prédios, chego a um beco sem saída. Até que, no último metro do quarteirão, surge mais um destes lugares exóticos, um Kebab Doner. Aceitam cartões de refeição. Não impõem limites mínimos. São todos simpáticos e conversadores, em inglês, e com uma ou outra palavra de português. Até me oferecem um banquinho e uma mesinha, dentro do seu espaço minúsculo de restauração, para me sentar a ler o jornal e a mandar mensagens no telemóvel. Cinco euros dá para uma sandes enorme de kebab, umas batatas gigantes fritas na hora, deliciosas e polvilhadas com orégãos, e ainda uma boa cervejinha. A procura terminou.

A mulher que dava conselhos sobre fruta

Pontos vermelhos na cara, caracóis grisalhos, pullover vermelho e camisa clara, ar adoentado e meio distraído, o sr. Martins, nos seus 70 e muitos anos, vai ouvindo com atenção intermitente a sua amiga, sentada ao seu lado, numa mesa do Mac Donald’s da Avenida de Roma, às onze e meia da noite.

 

Lenço lilás sobre a cabeça, ar jovial e extremamente desperto, esta mulher de meia idade não pode deixar de causar curiosidade. Fala alto e depressa, parece pessoa com alguma distinção e educação e torna-se impossível não a escutar.

 

O sr. Martins tem uma atitude calma e passiva, e não consegue ouvir muito bem tudo o que ela diz, da mesma maneira que ela também não o escuta por inteiro, nem o deixa falar.

 

Seja lá como for, a senhora do lenço e o sr. Martins são amigos, ou conhecidos, e ela está preocupada com a saúde e as finanças dele. Farta-se de lhe dizer que não pode comer fruta muito madura, não pode. A fruta verde é mais leve e saudável, a madura fermenta e tem muito metanol (álcool), o que lhe faz mal. O dinheiro que ele gastou num menu do Mac Donald’s, insiste ela, chega-lhe para comprar várias peças de fruta saudável…

 

Mas a senhora do lenço também gosta de falar, em geral, e de dizer coisas sobre si própria e a sua vida. De maneira que acaba por envolver uma terceira mulher, afável, gentil e curiosa, na conversa. E vai daí, fala-lhe do avô. O antepassado armazenava moedas de prata, valiosas e grossas, numa caixa de ferro pesada e forte (“não ia guardar notas, para os ratos as comerem!”), e enterrava-a na adega de terra batida, em lugares recônditos e ocultos.

 

O sr. Martins já está quase fora da conversa, que nem consegue ouvir. A senhora do lenço está a vestir-se e a preparar-se para se ir embora há uns dez minutos. Mas entretanto vai falando com toda a gente, ou para toda a gente.

Ajudei um terrorista

Tinha sido avisado por toda a gente para evitar andar a passear pelas ruas de Nairobi, considerada uma cidade destacada no ranking das menos seguras do Mundo. Mesmo assim, vesti as roupas mais simples e ordinárias, tirei quase todos os valores dos bolsos, menos o cartão multibanco, e fui dar uma volta, ao início da tarde.

 

Naquela zona não havia nada de extraordinário para ver, sem contar com algumas manifestações públicas de fé religiosa (neste caso cristã), algo a que os quenianos são muito dados. E lá ia eu, a tentar fazer um ar “normal”, como se isso fosse possível para um ocidental de pele clarinha numa capital africana. Tudo ia bem…

 

Às tantas aparece um homem, de ar aflito e preocupado, e pede para falar comigo. Começamos a conversar. Conta-me que é um refugiado sudanês, em trânsito entre países, com o objectivo de chegar à Europa, para fugir aos problemas políticos do seu país e sobreviver.

 

A história que vai desenrolando não parece descabida, para alguém que gosta de ler sobre política internacional e vai acompanhando esse tema. E o diálogo acaba por ir parar a um pedido. Precisa de ajuda, para ele e alguns amigos conseguirem sair do Quénia e continuarem o seu caminho rumo à segurança da Europa. Ajuda em dinheiro.

 

Continuava a fazer sentido. No entanto, na altura de levantar dinheiro para (os) ajudar, já tudo cheirava um pouco a esturro. Mesmo assim, a parte irracional do cérebro e a vontade de fazer qualquer coisa por alguém ainda estavam a comandar o lado mais sensato e cauteloso do pensamento. Acabei por lhe dar esse donativo, não me lembro quanto, mas sei que não foram apenas 20 ou 40 euros.

 

O pior foi o segundo capítulo. Mal o refugiado desaparece, numa fracção de segundo, vejo-me rodeado de supostos agentes policiais (não muito convincentes mas razoavelmente encorpados e em clara superioridade numérica). Percebi, depois, que era tudo um esquema, e esta era a segunda parte da tramóia. Os alegados polícias queriam dinheiro para não me levarem para a esquadra de Nairobi (!) e me obrigar a passar algum tempo por lá. Porque, segundo eles, tinha ajudado um terrorista. Curiosamente, fiz frente (verbalmente) a estes quatro homens desconhecidos, isolado num país estranho e inseguro. Que era um cidadão europeu, que tinha direitos, e mais uns quantos argumentos do género.

 

Intimidação do lado deles, conversa fiada do meu lado, acabaram por me deixar ir embora. “Vá para o hotel, não olhe para os lados, não fale com ninguém, não volte a sair sozinho à rua”. Assim fiz. Mais tarde apercebi-me que, até no hotel (com bom aspecto e qualidade), se recusavam a acompanhar os clientes onde quer que fosse a partir do meio da tarde…