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“Ela dança descalça sobre cacos de vidro”

Não se consegue dançar nem rodar a cabeça. A maioria dos frequentadores ri-se e sabe que é normal, uns tentam mais convictamente que outros conquistar território, outros ficam indignados quando alguém lhes toca. Sente-se um certo bloqueio, lá para a madrugada, enquanto cada um se funde com a multidão dentro da discoteca Jamaica, no Cais do Sodré, e a massa de homens e mulheres ali contida é quase um organismo vivo e único. A Humanidade em comunhão física, ouvindo os sons dos anos 1970 aos 1990.

 

Enquanto se sente a impossibilidade do movimento, há qualquer coisa que está a acontecer. Duas raparigas novas e jeitosas começam a abrir caminho, esbracejando, movendo-se com um à-vontade e uma elasticidade que põem todos a olhar para elas. Uma morena, de cabeleira comprida, outra aloirada, de cabelo curto e irregular. Com elas, dois ou três moços jovens, estatura média, cabeça quase rapada, barbas, bigodes, patilhas bem aparadas, blusões de cabedal, completam o quadro e o grupo bem disposto. Elas são raparigas e giras, ninguém as importuna. À volta têm os amigos, dando mais solidez àquele sector da pista, que se expande.

 

Dançam, saltam, pulam, abrem uma clareira. Eu e a minha amiga unimo-nos temporariamente a esta tropa simpática, para podermos contorcer o corpo e o espírito sem restrições. É a semana da morte de David Bowie, cada vez que o DJ passa um tema do artista a emoção centuplica-se.

 

A loira é enérgica e imparável, é um espectáculo individual, seja ao som do rock, do pimba, ou da electrónica mais pura. A morena é sedutora e descarada, dá encontrões a todos e depois ri-se e brinca com os atingidos, deixando-os desarmados. “Ela está a dançar descalça em cima de cacos de vidro”, nota a minha amiga.

 

A pista é fogo e dinamite, parece que a música está a ser escolhida de propósito, com um único critério: o mais mexida possível. Dentro e fora da secção que se abriu e tomou conta do espaço, está tudo alegre e em paz. Todos aceitam o processo e compactuam com ele. É a loucura até ao fim. Quando batem as seis da manhã, continuamos a agitar-nos, para lá da força humana. O Jamaica é isto.

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