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Não tem ninguém… Mas nunca está sozinha

Era novo e tonto: Não reparava que o meu tio mostrava um respeito e uma consideração enorme por mim, o jovem filho do adorado sobrinho, e pelos dois fazia tudo. Nem insistia muito em fazer-me acreditar nas mesmas ideologias utópicas e saudosistas que ele, embora fosse sempre deixando a sua pitada, a ver no que dava. Ele e a tia enchiam-me, e à minha irmã, dos melhores petiscos, iguarias e acompanhamentos líquidos que se tinham habituado a degustar deliciadamente nas décadas que viveram em França.

 

Os irmãos irrequietos foram crescendo, tornaram-se adultos e dedicaram-se às suas vidas e profissões. O meu tio, depois de 70 e muitos anos a comer por ele e mais alguém, sempre do bom e do melhor, eternamente em grande forma, acabou por ser levado bastante rapidamente por uma doença destrutiva e violenta, que deve ter tido algo a ver com o muito e muito que gozou (e partilhou) enquanto andou por cá, quase até ao fim.

 

Os meus tios adoravam animais – naquela altura, cães. Tinham uma animada e feliz matilha de raça pequena, todos simpáticos e fortemente mimados. Eram uns lordes, que comiam e bebiam quase tanto como os seus dois humanos dedicados. De espécie pequena, sim. Mas de tanto encher os ventres proeminentes, quase pareciam animais de grande porte.

 

Quando o meu tio abandonou o números dos vivos, onde deixou grandes marcas e melhores memórias, a minha tia ficou sozinha… Mas o amor pelos amigos de quatro patas continuou extremamente vivo. E, liberta das opiniões e perspectivas do seu companheiro de toda a vida, dedicou-se com grande empenho e carinho aos gatos.

 

Sendo a Quinta do Conde um ambiente periférico e de certa forma semi-rural, com mais quintais e terrenos que prédios, estes patudos são bichos de casa e rua, com todos os respectivos inconvenientes, a começar por atropelamentos mortais, que já causaram terríveis desgostos à minha tia.

 

Ela diz que, agora, só tem uma gata. Além dos diversos gatos que “não são dela”, mas que vão alimentar-se à casa e ao quintal dela todos os dias. São todos da mesma família, brancos às bolas pretas,  ou o contrário. É claro que têm um estatuto bastante confortável e favorável, ainda que a tia diga que não são dela. Comida, atenção e preocupação não lhes falta. O que a deixa com os cabelos em pé é que os gatos das outras casas e quintais venham ali consumir a ração pertencente aos bichos “associados” à residência dela. Mas é uma distinção difícil de instituir, já que os pequenos ronronantes não reconhecem legitimidade a essas fronteiras subtis.

 

A gata de casa, a tal que “é dela” e tem as suas instalações e pernoitas garantidas na habitação, é, naturalmente, a que vive a existência mais privilegiada. Entra e sai quando lhe apetece, tem a abundante alimentação mais que garantida, a tia assegura-se de que ela não engravida nem é atacada por parasitas… Esta menina, a Bolinhas, gosta de se pôr de pé para a sua humana, e, quando deixamos uma mão acidentalmente dependurada a abanar ao lado do sofá onde estamos recostados, vem esfregar-se aprazivelmente, reclamar o carinho que lhe apetece receber.

 

Sozinha, sem filhos ou outros familiares por perto, o dia-a-dia da tia seria triste e entediante de outra forma. Mas com a Bolinhas, a sua filha adoptiva de quatro patas, ela nunca está sozinha nem desocupada. As tropelias da gata preenchem-lhe os dias, as suas brincadeiras e malandrices fazem-lhe companhia e deixam-na contente. E já está decidido, um dia que ela tenha que ir viver com a filha, em França, é claro que a Bolinhas vai com ela.

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